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Zapping - Cristina Padiglione
Descrição de chapéu Três Perguntas Para...

Em 'Além da Ilusão', Guilherme Silva fala sobre estereótipo do homem negro

Ator comenta a construção do personagem Onofre e sua importância para a TV

O ator Guilherme Silva - Instagram/guisilva_art
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Campinas

Comprometida a fugir das narrativas comuns a personagens negros nas novelas, "Além da Ilusão" traz indivíduos múltiplos e diversos em sua negritude. Apesar de não tratar diretamente questões como o racismo, a trama de Alessandra Poggi possibilita ao telespectador observar as camadas que compõem a personalidade e os comportamentos de seus personagens, como é o caso de Onofre (Guilherme Silva).

Grosseiro, sempre em busca de confusão, emocionalmente distante e viciado em álcool, ele parece viver de mal com a vida. No entanto, um olhar atencioso consegue perceber os atos de afeto do personagem, como cuidar da esposa, Felicidade (Carla Cristina Cardoso), que quase perdeu o bebê, levar a filha mais nova, Madá (Vivi Sabino), para andar de bicicleta, e jogar fora a bebida que guardava em casa.

Para o ator Guilherme Silva, 36, dar vida a Onofre é uma oportunidade de questionar estereótipos e falar sobre a construção do homem negro em meio a problemas sociais como o racismo, a escassez de recursos e a impossibilidade de sonhar.

Com diversos trabalhos no teatro, ele já atuou por companhias como o Bando de Teatro Olodum e a Cia. Gente de Teatro da Bahia. Na Globo, Silva interpretou Martin Luther King Jr. no especial "Falas Negras" (2020), dirigido por Lázaro Ramos.

O ator foi o convidado da semana na seção "Três Perguntas Para...", por onde já passaram nomes como Zebrinha, Ana Flávia Cavalcanti, Mariana Santos e Cris Guterres. Confira:

Como você observa esses estereótipos de violência, agressividade e vícios, geralmente relacionados ao homem negro, na construção do Onofre?

Eu digo que o Onofre é construído com base em homens reais, porque são as vivências também da minha vida, enquanto homem preto, e de alguns outros homens pretos ao meu redor. Uma coisa que eu fiquei com muito receio, quando conversei com [o diretor] Luiz Henrique Rios sobre o personagem, era justamente essa questão de qualificar o personagem, mais uma vez, nos estereótipos relacionados ao homem preto: negligente, viciado em álcool, um tanto criador de confusão...

Mas, na conversa com ele, eu fiquei muito mais tranquilo, entre aspas, quando a gente foi caindo no que poderia ser e no que está acontecendo na abordagem desse personagem —não como um personagem superficial, com uma história superficial, e sim com uma abordagem sobre a vida desse cara, sobre o porquê de ele agir daquela forma.

E daí vem essa questão do meu processo de observação, e de auto-observação também. Eu lembro que na transição da adolescência para a fase adulta tive alguns conflitos com meu pai, e uma das questões era com relação a esse processo de estereotipação acerca do homem preto: eu me entendendo enquanto não pertencente àquele estereótipo. Isso ficou na minha cabeça por muito tempo.

Eu comecei a avaliar aquilo. Primeiro, escutando e abrindo o campo de escuta para as mulheres pretas: qual era a perspectiva disso, o que chegava, o que faltava, o que sobrava... E daí eu fui me revendo e me avaliando, tipo: não pertenço a esse estereótipo, nem eu e nem muitos dos homens pretos que eu conheço.

O que você acredita que, na sua vivência, permitiu ser um homem diferente dele?

Eu acredito que é o mesmo que eu tento trazer como a base do Onofre, quando acontece o que chamam de "reviravolta" na vida dele. Mas eu falo assim: cara, ele sempre foi assim, ele sempre foi afetuoso. E é isso: dentro da constituição dessas figuras que eu via, que fazem parte da minha vida, eram sempre figuras afetuosas. Só que o endurecimento por meio da vivência cotidiana as leva a ter uma outra forma de viver esses afetos.

O afeto acaba sendo um reconhecimento básico, um tapa nas costas, um 'que bom que você conseguiu', ou pelo menos um olhar afetivo distante. E ainda tem essa perspectiva do machismo, que adentra toda essa configuração e transforma isso em uma grande bola de neve, junto com as questões que fazem parte do processo de racismo. Isso leva a essa perspectiva de um não reconhecimento [do homem negro] enquanto ser afetivo.

Mas minha defesa acerca do Onofre é que ele sempre foi afetivo, ele ama a família. E é justamente quando ele se toca de que a conduta dele está afetando muito a família, está colocando a família realmente em risco, que ele se coloca numa situação de 'não, eu tenho que modificar minha maneira de ser'.

Com relação ao vício em álcool, por exemplo, você diria que ele entra em um embate consigo mesmo?

Eu costumo dizer que o Onofre é um anti-herói. Ele é meio atrapalhado, mas todo o processo de conduta dele é, de alguma forma, um tanto positivo. E o confronto sobre a questão do alcoolismo acontece justamente sob uma perspectiva afetiva: o que conduz ele nessa reformulação de atitude é a premissa afetiva com a família dele.

Até ele estar nessa condição foi por uma premissa afetiva, a Felicidade conta isso. Ele sonhava em ser jogador de futebol. Ele já tinha se juntado com a Felicidade, já estava conseguindo construir alguma coisa [nessa carreira], só que nesse processo veio a primeira filha, a Letícia (Larissa Nunes). Aí ele se abstém completamente do sonho dele e vai trabalhar em uma coisa de que ele nunca gostou, que é o trabalho braçal.

Mas isso pela perspectiva de manter a família, então não tem o abandono parental. Ele se dedica à família, está ali, presente o tempo todo. Mas vira uma pessoa amarga porque vão ocorrendo frustrações, uma atrás da outra: ele deixa de realizar o sonho, vai trabalhar numa coisa de que não gosta, então não tem como essa figura ser uma figura feliz naquele momento.

Mas justamente a base dele é familiar. É a Felicidade, que está o apoiando o tempo todo, são as filhas, que ele adora. E aí tem essa quebra também de estereótipos no Onofre: ele é todo tirado a machista mas o tempo todo são as mulheres da família dele que estão mandando nele, e ele está ali, e obedece tranquilamente.

Brincando com Carla [Felicidade] e Larissa [Letícia], falei assim: ele dava uma de durão com a Felicidade e com a Letícia, mas quando chega a Madá, ele se desconstrói completamente. Ela bota ele no bolso muito tranquilamente. E aí conserta a bicicleta, leva para ela e tal... Então é isso, todo processo de construção do Onofre passa pelo pelo viés afetivo. É por isso que a galera vem e fala: 'Ele é ruim', e eu falo: Ele pode ter más escolhas, mas uma pessoa ruim, uma pessoa perversa, ele não é.

Zapping - Cristina Padiglione

Cristina Padiglione é jornalista e escreve sobre televisão. Cobre a área desde 1991, quando a TV paga ainda engatinhava. Passou pelas Redações dos jornais Folha da Tarde (1992-1995), Jornal da Tarde (1995-1997), Folha (1997-1999) e O Estado de S. Paulo (2000-2016). Também assina o blog Telepadi (telepadi.folha.com.br).

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