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Zapping - Cristina Padiglione

Ana Flávia Cavalcanti fala de intolerância e fé, alvo de nova série

'O que vem da África ainda é maldito pela branquitude', diz atriz

A atriz Ana Flavia Cavalcanti
A atriz Ana Flavia Cavalcanti - Jorge Bispo
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Campinas

Aos 39 anos, Ana Flavia Cavalcanti, coleciona papéis em folhetins de sucesso da Globo. Só na emissora, a atriz passou por produções como "Amor de Mãe", "Sob Pressão" e "Além do Tempo", além de seus trabalhos no cinema e no teatro, onde atua, produz, dirige e cria roteiros.

Na série da Star+ "Santo Maldito", prevista para estrear este ano, a atriz dará vida a Maria Clara, mulher sem crenças religiosas, casada com um ateu (Felipe Camargo). Os dois são pais de uma adolescente.

A produção aborda temas como a intolerância religiosa e o "mercado da fé". Na trama, depois que Maria Clara entra em coma, Reinaldo passa por momentos de autoconfrontamento e dúvidas, ao aceitar um convite para pregar em uma igreja humilde em troca de dinheiro.

A atriz tem gravado a série da Globo "Os Outros", produção do mesmo autor de "Sob Pressão", Lucas Paraíso, dirigida por Luisa Lima. Ainda neste ano, Ana Flávia verá a estreia nas telas de seu primeiro filme, "Bocaina", rodado durante a pandemia.

Ela será ainda protagonista do thriller "Casa no Campo", coprodução independente entre Brasil, Argentina e França. Confira o que a atriz respondeu à seção "Três Perguntas Para...", por onde já passaram nomes como Mariana Santos, Cris Guterres, Maurício Meirelles, entre outros.

O que você pode nos contar sobre sua personagem em 'Santo Maldito'?

Eu faço a Maria Clara, uma mulher com idade próxima à minha, que tem uma filha de 18 anos e está casada há muitos anos com o Reinaldo, interpretado pelo Felipe Camargo. Eles são aquele casal meio heteronormativo que tem essa filha adolescente, e eles têm uma vida tranquila, aparentemente. Falta um pouco de dinheiro, ela parou de trabalhar para cuidar da filha e da casa.

O que eu acho mais forte da Maria Clara é que ela é uma mulher que vai dar uma virada na própria história e vai acabar se encontrando com ela mesma no decorrer da série. Inicialmente, a gente fica pensando que ela é uma mulher que está para o casamento e nada mais, quando não, ela vai nos surpreender.

É uma personagem bem profunda, que vai fazer uma autoanálise, vai passar por um processo muito tenso —que obviamente eu não posso contar porque seria um spoiler muito forte da história. Mas eu posso contar para você que tem grandes surpresas, à medida que os episódios vão acontecendo. Ela vai primeiro entrando em contato consigo mesma, e se apresenta como uma mulher muito diferente do começo e para o final da primeira temporada.

Um dos temas tratado pela série é a intolerância religiosa. Você já passou por alguma situação assim? Qual a sua religião?

Eu pratico o candomblé desde os 6, 7 [anos]. Minha melhor amiga era sobrinha de uma Ialorixá muito importante em Atibaia, que é uma cidade muito branca, elitista, colonizada pelos japoneses, com uma ascendência oriental muito forte nas tradições. E aí o Candomblé de Queto, nesse espaço, era —e é— ainda mais intolerado pela sociedade. Ao mesmo tempo em que é uma super resistência quilombola urbana. Esse lugar me ensinou muito sobre a minha negritude, a vida, o coletivo, e sobre o orixá também.

Só que eu era criança, né? E as crianças no candomblé são tratadas como seres pensantes, têm uma autonomia. Até porque a maior parte da população ali são mães, solteiras, negras, normalmente periféricas, de classes mais baixas, e que precisam fazer o corre da vida. A criança é mais uma coisa na vida da pessoa, e não tudo e absolutamente tudo. E ela é filha daquela comunidade. Eu falo do candomblé agora, mas eu acho que na periferia, de um modo geral, acontece muito isso: as crianças são cuidadas pelas vizinhas, pelas madrinhas.

Agora, intolerância é uma palavra que a gente já bateu muito nela. Eu prefiro falar de resistência. Porque sim, óbvio, é uma religião proferida, praticada e nascida em África —tudo que vem da África, aqui no Brasil e no ocidente, de modo geral, ainda é maldito, mal visto, desmerecido pela branquitude.

Então, sim, a intolerância acontece. Eu acho que o melhor exemplo de todos é que a gente tem uma bancada evangélica no Congresso e não tem uma bancada candomblecista, umbandista ou budista, sabe? É uma religião que ainda sofre bastante preconceito, e às vezes o preconceito vai além. Temos muitos casos de terreiros que são atacados por intolerantes, pessoas que não têm nenhum respeito pela religião.

Mas o que eu acho mais forte é falar de como a gente conseguiu preservar uma religião que não é do nosso país, que não nasceu aqui, e que existe há mais de 5.000 anos. É uma religião milenar, que vem antes de Cristo, e que profere uma uma língua que não é a nossa. A gente guardou esse costumes, esse mistério, e uma cultura passada a partir e através da oralidade, em que você tem que estar presente, você tem que estar lá para ouvir as histórias.

Além da religião, o candomblé está em muitas coisas da nossa cultura: na nossa música, na nossa roupa, na comida, no jeito, em várias palavras que a gente fala, que são palavras em Iorubá. Estamos imbuídos nessa cultura.

Artistas e pensadores negros sempre são chamados a falar, por exemplo, do candomblé, da negritude. O que nunca te perguntaram em uma entrevista mas você queria compartilhar?

Muitas coisas nunca me perguntaram. Mas o que eu gostaria de compartilhar é como eu me sinto hoje em dia. Hoje, dia 4 de maio de 2022, tenho 39 anos, sou filha de uma mãe solo —uma mulher negra filha de nordestinos imigrantes, empregada doméstica, que teve uma saída na vida complexa em muitos aspectos mas que, apesar dessas condições desfavoráveis, conseguiu ensinar valores muito poderosos.

Sempre que posso, eu gosto de reverenciar minha mãe. Porque eu acho que uma mãe —principalmente uma mãe preta no Brasil— é uma divindade, uma bondade pura. E é uma pessoa que carrega, apresenta e divide com os seus próprios filhos e com outras pessoas muita força de vida, muita fé na vida.

E a gente está precisando disso: ter fé, acreditar que podemos virar esse jogo, esse cenário político, que a gente pode mudar a história, por exemplo, que estão vivendo agora os yanomamis e o povo indígena no nosso país desde sempre.

Sem fé é difícil levantar da cama, minha mãe me ensinou isso desde que sou um neném na barriga dela. Então, eu gosto de olhar para a minha história hoje, aqui, agora, e dizer: 'Poxa, muita coisa dura, muita coisa difícil, mas tem que ter fé na vida, no futuro, no amanhã', e lutar também, né? Não tem como tirar essa palavra do nosso vocabulário cotidiano. A gente tem que ir atrás das coisas que acredita, que fazem bem para a gente e para o entorno.

Eu gostaria de falar isso: que eu amo muito a minha mãe, que eu amo a minha história, e que 'tá mó legal'. Estou em um momento bem bonito.

Zapping - Cristina Padiglione

Cristina Padiglione é jornalista e escreve sobre televisão. Cobre a área desde 1991, quando a TV paga ainda engatinhava. Passou pelas Redações dos jornais Folha da Tarde (1992-1995), Jornal da Tarde (1995-1997), Folha (1997-1999) e O Estado de S. Paulo (2000-2016). Também assina o blog Telepadi (telepadi.folha.com.br).

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