Cris Guterres celebra o saldo do 1º aniversário do Estação Livre
Feito por mulheres negras, programa da TV Cultura valoriza a diversidade
Convidada para apresentar seu primeiro programa durante a pandemia de Covid-19, a jornalista Cris Guterres, 40, aceitou o desafio. Agora, ela completa o primeiro ano à frente do Estação Livre, atração da TV Cultura voltada a valorizar a cultura negra e a diversidade do Brasil, segundo a própria emissora. Exibido pela primeira vez em 9 de abril de 2021, o programa vai ao ar toda sexta-feira, às 22h.
Feita por uma maioria de mulheres pretas, a atração foi a vencedora do Troféu Mulher Imprensa 2021. Para isso, Cris tem uma explicação: "Nós, negros, estamos preparados para quando as portas forem abertas para nós", afirmou, sem titubear.
Além de realizar o próprio sonho, Cris honrou o legado de sua mãe, que lhe dizia: "Filha, quando você for trabalhar na televisão, vai ser na TV Cultura". Apesar de ter partido antes de ver sua profecia se cumprir, a matriarca estava certa: o primeiro trabalho da jornalista como apresentadora de TV foi mesmo na emissora.
Cris Guterres é também empreendedora e redatora. Ela assina uma coluna para a plataforma feminina Universa Uol, além de escrever para a Life Magazin's e a Women to Watch, do portal Meio e Mensagem.
Eclética, a apresentadora já se aventurou pela moda, gastronomia, comportamento e outras coisitas mais. Em 2018, fundou o Meteora Podcast em parceria com a publicitária Renata Hilario. O projeto rendeu os títulos de criadoras de conteúdo mais relevantes de 2019 pelo Youpix e criadoras mais inovadoras pela Forbes, em 2020.
Cris já recebeu mais de 100 convidados em 52 edições do Estação Livre. Entre os nomes que já passaram pelo programa estão Djamila Ribeiro, Karol Conká, Rashid, Margareth Menezes, Helio de La Peña, Sergio Loroza, Salgadinho, Luedji Luna, Jairo Malta, Abílio Ferreira, Elisa Lucinda, Eliana Alves Cruz e Adriana Barbosa.
Ela é entrevistada na seção "Três Perguntas Para...", por onde já passaram nomes como Maurício Meirelles, Karina Dohme, Malu Galli e Yuri Marçal, entre outros. Confira:
Nos primeiros meses do Estação Livre, você recebeu prêmios pelo seu trabalho à frente do programa. Você acredita que já chegou pronta?
A gente ganhou o Troféu Mulher Imprensa como Melhor Programa de Temática de Diversidade no Brasil. Isso demonstra uma coisa muito importante: que nós, negros, estamos preparados para quando as portas forem abertas para nós. Nós sabemos o que precisa ser feito e nós estamos preparados para produzir trabalhos de qualidade, trabalhos necessários para o desenvolvimento positivo da população brasileira.
Não é à toa que quando abrem a porta, a gente recebe o prêmio. Para mim, foi incrível receber esse prêmio. A gente receber qualquer menção já é algo maravilhoso, e aí receber um prêmio no primeiro ano, que é um ano de segurança, [é ainda melhor].
Por mais que eu acredite em mim, eu me sinto insegura. [Eu questionava:] 'Será que meu programa vai dar certo? Será que vão renovar meu contrato? Será que as coisas vão continuar? Será que a população está gostando?'. Ainda mais em um momento em que a gente estava na pandemia, não tinha essa coisa de sair na rua.
Agora, quando saiu, já começa: 'Meu Deus, é aquela moça da TV Cultura'. Não sabem meu nome ainda porque eu comecei agora, o programa é uma vez por semana, mas eles sabem que eu sou da TV Cultura. E tem uma coisa que acho que é o maior prêmio: o reconhecimento do público. A gente ser reconhecido pela nossa carreira, receber prêmios, é maravilhoso —ainda mais na cultura brasileira, que adora prêmios—, mas o reconhecimento real é o do público.
Para mim, estar em um restaurante e vir uma senhora branca em minha direção, chorando, para me agradecer, dizendo que se não fosse eu, ela nunca teria aberto os olhos para o racismo que existe no nosso país, não tem como eu não me emocionar, não tem como não ficar mexida com isso.
Esses dias, um rapaz falou: 'Minha mãe ficou emocionada no dia da medicina, porque ela nunca viu um médico negro'. É sobre a gente criar sonhos nos corações e na mente da população brasileira, e principalmente das nossas crianças.
Como funciona a definição das pautas do programa? Você tem liberdade para propor formas de falar sobre a população preta que não sejam só pela dor?
Eu acho que esse é o primeiro acordo nosso: a gente ter a população preta no foco do nosso conteúdo, mas sem colocá-la nesse lugar estereotipado. E sim, falamos de racismo no programa. Às vezes os convidados trazem esse assunto nas respostas, nas conversas, e a gente já gravou programas específicos falando da pauta racial. Mas isso não é nosso foco. O nosso foco é colocar a população negra em seu potencial, enxergar potência.
Temos uma equipe aí que deve ser de umas dez pessoas, mais ou menos, trabalhando. Mas para pensar as pautas, somos em umas cinco pessoas. Eu participo junto com elas, a Andreia, que é a diretora do programa, geralmente é quem nos conduz, porque o programa está sob a organização jornalística da TV Cultura, e da diretoria jornalística, que tem o Leão Serva como responsável. O Leão, junto com a Bombom, vai pensando nos temas.
A gente sugere, nós somos todos ouvidos —inclusive, muitas das minhas indicações. Eu gosto muito de indicar pessoas, pautas... É disso que eu mais gosto da nossa equipe, é uma equipe que ouve. Às vezes eu trago umas coisas que elas falam: 'Isso daí não tem nada a ver' (risos). A gente brinca, né? Eu falo: 'Gente, por favor, eu estou querendo dar em cima dessa pessoa. Ajuda aí, dá uma força para mim' (risos).
Como você avalia a sua trajetória? Você imaginava que alcançaria esse lugar ainda jovem?
Olha, de vida eu não sou tão jovem. Adoro quando você faz essa leitura porque é o que eu gosto de passar, mesmo. Sou jovem na televisão, mas eu já tenho 40 anos, vou fazer 41. E eu acho que é importante a gente ressaltar isso porque, se eu fosse talvez uma mulher branca, eu estaria chegando na televisão com 18, 23, 24 anos.
Por ser uma mulher negra, precisei de 20 anos provando a qualidade do meu trabalho, e foi necessário também que a gente fizesse um levante na comunicação a partir de algumas situações violentas que aconteceram, não só no Brasil, mas no mundo —situações racistas, violentas—, para que as pessoas abrissem os olhos para a necessidade de a gente criar programas representativos na televisão brasileira.
Eu sempre sonhei em ser apresentadora de TV. Na faculdade, eu fui aquela que apresentou todos os programas, tudo que teve de rádio, de televisão, eu fiz. Eu brigava por esses lugares. Em um determinado momento, eu achei que esse era um sonho grande demais para mim.
Porque a gente começa a receber as leituras que são feitas só por a gente ligar a televisão: a gente não se enxerga. Quando tem, é uma ou outra, então a gente entende o que, se já tem a Maju, se já tem a Glória Maria, esse lugar já está ocupado. Eu vou ter que esperar ela se aposentar para eu entrar —foi isso que a gente veio acompanhando ao longo de toda a história da televisão: a história única, de uma negra que ascende, de um negro que ascende.
Mas eu sempre sonhei. Então, quando veio, de uma certa forma eu falei assim: 'poxa, eu estava certa de ter insistido, de não ter desistido' —porque, embora pense em desistir várias vezes, eu não desisto. Eu tenho que sair um pouco da carreira muitas vezes porque financeiramente não dá para a gente ficar o tempo inteiro buscando um sonho. [...] Pena que demorou muito tempo, mas que bom que eu não desisti, porque se tornou real.
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