Uma garota-propaganda é atropelada pelo futebol na Globo
'Garota do Momento', uma boa novela, vem sofrendo para se consolidar diante de tantos campeonatos de futebol
Não é fácil a vida de uma novela inédita da Globo. Ela sofre concorrência de todos os lados: da reprise de uma novela antiga com elenco muito mais conhecido, das novelas turcas na concorrência, e agora de um inimigo mais poderoso: os jogos de futebol ao vivo, cujo espaço aumentou drasticamente na grade da emissora.
A última vítima, nocauteada várias vezes no ringue mas ainda levantando com dignidade, é "Garota do Momento", novela das 18h escrita pela ótima Alessandra Poggi. Ela tem todos os ingredientes que costumam fazer sucesso no horário: uma trama de época ambientada nos charmosos anos 50, personagens carismáticos, mocinha batalhadora, bons vilões e alguns atores que o público ama ver na tela (Lília Cabral, Fábio Assunção, Letícia Colin, Palomma Duarte).
Um alerta vermelho acendeu no último dia 23, um sábado, quando "Garota do Momento" marcou 14 pontos de média em São Paulo, tombo de cinco pontos em relação à véspera, e de sete pontos na comparação com a estreia.
O motivo: nesse dia, o SBT transmitiu a final da Copa Sul-Americana, quando o argentino Racing venceu o Cruzeiro por 3 a 1. A partida chegou a dar à emissora dos Abravanel 8 pontos de média.
Na terça, dia 26, um novo susto: a novela marcou 17,8 pontos, a pior marca para esse dia da semana desde a estreia. Ela entrou mais cedo no ar, às 18h05, para que às 21h20 começasse um clássico da reta final do Brasileirão, Botafogo x Palmeiras.
A novela das sete, "Volta por Cima", também acusou o baque, com 18,5 pontos. Nesse mesmo dia, às 21h, a Record marcava uma de suas maiores audiências para a novela turca "Força de Mulher", num capítulo decisivo: 9,1 pontos.
No dia seguinte, mesmo sem futebol, "Garota" não reagiu, mantendo-se nos 17,7 pontos. No último sábado, dia 30, por conta da final da Libertadores (Botafogo x Atlético-MG), o capítulo da novela foi sumariamente sacrificado.
Coincidência ou não, no domingo, Duda Santos, a protagonista da novela, era uma das estrelas do quadro "Tamanho Família" do Domingão, num esforço para promover o produto abalado.
Vilã dos quadrinhos
É uma luta inglória: a Globo, assim como outras emissoras abertas, tende a priorizar o futebol porque sua transmissão ao vivo simplesmente dá mais dinheiro, ainda mais em época de bets esportivas anunciando loucamente, dentro e fora dos campos.
A novela pode ser vista depois no Globoplay, e há muito tempo as tramas do horário não têm revelações bombásticas que façam a espectadora correr pro sofá no horário certo.
Isso não quer dizer que "Garota do Momento", uma novela pra lá de simpática e charmosa, não possa ter alguns ajustes. Letícia Colin, uma ótima atriz, ainda precisa aprimorar sua vilã Zélia, a falsa irmã da amnésica Clarice (Carol Castro).
Está caricatural e cartunesca demais, numa chave cômica próxima de sua vilã recente, a Vanessa de "Todas as Flores". Ela também precisa de uma trama maior em torno dela, mais do que só querer umas joias aqui e ali do empresário Juliano (Fábio Assunção).
Alfredo Honório, o apresentador de auditório que Eduardo Sterblitch faz lindamente inspirado em Silvio Santos e Flávio Cavalcanti, também merece se expandir. Os sonhos que a dona de casa Anita (Maria Flor) tem com ele são um dos pontos altos da novela.
A superpoderosa
Mas existe uma questão maior ainda a ser avaliada. "Garota do Momento" faz parte de uma novela leva de filmes e séries que fazem uma espécie de revisionismo histórico, dando ao negro um protagonismo que ele não tinha na época retratada. O movimento ganhou força com a série "Bridgerton", da Netflix, que trazia uma monarquia britânica negra.
Beatriz (Duda Santos) é uma garota negra do interior do Rio que chega à capital e não só se torna garota-propaganda da fábrica de perfumes de Juliano, como ganha até poder de veto sobre a campanha que vai estrelar, trazendo visões feministas e antirracistas que não existiam na época.
Num país ainda marcadamente racista como o Brasil, só uma boa pesquisa qualitativa vai poder apontar qual é a fatia de espectadores que compram a fábula de um Brasil mais igualitário, e qual é a parcela de pessoas que rejeita a história pensando que Beatriz nunca teria um espaço desses no Brasil dos anos 50.
E não adianta apontar racismo nessas pessoas, que são as primeiras a se identificarem como cidadãos de bem e sem preconceitos.
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