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Zapping - Cristina Padiglione

'Os Outros' é série que não desgruda da mente do telespectador

Do GloboPlay, enredo aborda intolerância por meio de pessoas que vão bem além dos estereótipos

A atriz Maeve Jinkings em cena
Maeve Jinkings é Mila na série 'Os Outros': cena apresenta personagem com as marcas de violência doméstica - Reprodução GloboPlay
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São Paulo

Autor da série "Os Outros", em cartaz no GloboPlay, Lucas Paraízo bem que avisou, assim como a diretora artística Luísa Lima, que o enredo tinha alto potencial para gerar identificação no telespectador. É certo que em algum daqueles personagens a gente há de se ver, e de modo quase cruel, a ponto de mirar nesse espelho os defeitos que nem você conhecia no seu comportamento.

Se as aparências enganam, os estereótipos podem ser cilada maior, revelando figuras capazes de despertar compaixão em vez da repulsa inicial, ou de provocar ojeriza onde antes havia aplausos. É verdade que ninguém é apenas mau ou bom, mas há os que são piores e os que nos parecem melhores.

"Os Outros" escancara a alternância de defeitos e qualidades que cabem em todos nós, da direita à esquerda, do preto ao branco, do pobre ao rico. Até aqui, com oito dos 12 episódios exibidos, as exceções são Sérgio, o ex-policial vivido por Eduardo Sterblitch, e Dona Lúcia, a síndica interpretada por Drica Moraes, ambos desprezíveis sob qualquer aspecto.

Mas essa via de mão única passa longe do sexteto protagonista da divergência que dá origem à história, ali representado por dois casais e seus respectivos filhos.

A princípio, é improvável que Cibele, a mãe superprotetora e vingativa vivida por Adriana Esteves, em algum momento vá estender um afago a Rogério, personagem complexo e brilhantemente defendido por Paulo Mendes, que liderou uma surra no filho dela, Marcinho, papel de Antonio Haddad.

Tampouco seria previsível que os espectadores identificados com a tolerância de Amâncio e Mila, tipos vestidos com maestria por Thomás Aquino e Maeve Jinkings, se vissem, em algum momento, torcendo pela vida de Vando --a propósito, que atuação extraordinária, a de Milhem Cortaz.

Quem vê o bom mocismo de Amâncio estampado logo de cara no tom amistoso com que ele tenta resolver o impasse entre seu filho e o do vizinho não espera que o sujeito vá tropeçar sem dó em cacoetes machistas da pior espécie. Diante do primeiro problema com o filho após a separação, ele, que já mora sob outro teto, questiona como é que a ex-mulher "permitiu que aquilo acontecesse".

Aquele sujeito que você tanto admirou no episódio anterior pode se mostrar um babaca no capítulo seguinte, e é aí que a gente mais se vê no divã necessário ao umbigo: "Será que eu faria isso?"

"Os Outros" gruda na mente, ocupa espaço nas ideias do espectador e até rouba do seu cérebro o lugar onde antes só havia problemas seus. Deixo de pensar nos boletos a pagar para me preocupar com o destino de Rogério no próximo episódio, como se ele fosse um filho meu.

O texto de Paraízo e a direção de Lima entregam códigos rapidamente reconhecidos pela plateia, manifestações claras de afeto, ódio, intolerância, machismo e corrupção, mas o melhor da obra, além das atuações excepcionais, muito acima da média, está nas sutilezas e entrelinhas de cada cena.

Ainda no primeiro episódio, chama atenção uma sequência em que Mila limpa em sua coxa resquícios de esperma deixados por Vando após uma relação sexual a que ela tentou resistir. Convocada a comparecer no seu "papel de esposa", não relutou muito. Cedeu, ainda que a contragosto. Isso tem nome e a grande maioria desconhece: é estupro marital.

A cena expõe uma agressão muito comum, mas jamais retratada de tal forma, e dificilmente seria realizada por um diretor homem. A digital feminina permeia todo o olhar sobre o texto, feito de diálogos a que a gente se desacostumou ver na TV, e mesmo na comunicação, de modo geral, hoje tão ciosa dos cliques ditados pelos algorítmos.

Para quem ainda não sabe do que trata "Os Outros", vamos aos fatos: a agressão de Rogério a Marcinho, motivada por uma bolada acidental no rosto, coisa besta de jogo de futebol entre moleques, desencadeia uma briga feroz entre vizinhos de classe média.

A história se passa em um condomínio na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, mas poderia ser em qualquer lugar do país capaz de refletir a cobiça por status. O ambiente funciona como microcosmo de Brasil.

A segunda temporada já estava aprovada antes mesmo de a primeira estrear. Os episódios são disponibilizados em doses homeopáticas, todas as quartas e sextas, faltando agora quatro capítulos para o encerramento da primeira safra.

Divirta-se. Reconheça-se. Corrija-se. Faz bem à saúde --nossa e dos outros.

Zapping - Cristina Padiglione

Cristina Padiglione é jornalista e escreve sobre televisão. Cobre a área desde 1991, quando a TV paga ainda engatinhava. Passou pelas Redações dos jornais Folha da Tarde (1992-1995), Jornal da Tarde (1995-1997), Folha (1997-1999) e O Estado de S. Paulo (2000-2016). Também assina o blog Telepadi (telepadi.folha.com.br).

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