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Zapping - Cristina Padiglione

Série que estreia na Globo, 'Onde Está o Meu Coração' valoriza arquitetura de São Paulo

Produção que rendeu indicação de Letícia Colin ao Emmy Internacional foge de estereótipos ao abordar dependência química

Letícia Colin , caio castro
Letícia Colin, aqui em rodoviária de Sâo Paulo, vive Amanda, médica de classe média alta que sucumbe ao crack - Fábio Rocha/Divulgação
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"Onde Está o Meu Coração", a minissérie em dez capítulos que estreia nesta terça-feira (31) na Globo, tem a dependência química no centro do enredo criado por George Moura e Sergio Goldenberg, e elenca em torno desse argumento um conjunto de elementos nada óbvios.

A capacidade de fugir de estereótipos surpreende o espectador, inclusive pelo fato de São Paulo, a metrópole, ser quase uma protagonista da história, sem que isso signifique longos planos da Cracolândia ou de seus fragmentos espalhados pela cidade, onde circula a pedra que leva Amanda --personagem de Letícia Colin-- ao pior dos mundos. A performance da atriz lhe rendeu uma indicação como finalista do Emmy Internacional de atriz.

A série foi toda filmada em locações, sem nem uma porta de estúdio, e traduz por meio dessas escolhas por cada esquina, cada edifício e cada residência ali espelhada a ideia da São Paulo potente, de bem traçadas linhas arquitetônicas, com espaço para acolher, mas que por isso também assusta.

"O gigantismo de São Paulo é o mesmo que oprime", cita Moura. "O fato de ter sido toda rodada em externas e em São Paulo deu uma cara e uma força à série", completa o autor.

Amanda é fruto desse contraste. Médica ciosa do compromisso de salvar vidas, ela acumula frustrações por inevitáveis perdas de pacienes, e ao desanuviar a tensão ao lado do marido, Miguel (Daniel Oliveira), descobre os efeitos do crack.

Os dois provam a droga em uma festa, em tom de recreação, mas só ela volta a buscar por aquele efeito de novo e de novo, o que evidencia a questão da dependência como doença. Daí a necessidade de ser tratada como alvo de saúde, não de polícia, como sublinham os autores.

Além de edifícios icônicos de Paulo Mendes da Rocha, Ruy Ohtake e Isay Weinfeld, "Onde Está o Meu Coração" elege espaços amplos para dialogar com as cenas de Amanda. Os traços arquitetônicos da cidade circundam o drama da personagem sem que o espectador necessariamente se dê conta disso.

Locação da série Onde Está o Meu Coração
Detalhes do apartamento de Miguel (Daniel Oliveira) e Amanda (Letícia Colin), obra de Paulo Mendes da Rocha, na série 'Onde Está o Meu Coração'. - Fábio Rocha/Divulgação

"O apartamento do casal [Miguel e Amanda], gravado em um edifício projetado por Paulo Mendes da Rocha, é modernista, envidraçado" diz a diretora-geral da série, Luísa Lima. "Você enxerga a cidade toda, a relação se dá muito com a metrópole. É o modernismo como movimento que tentava resolver os problemas das pessoas, organizar a vida com praticidade, mas que não consegue necessariamente organizar as coisas da alma e do coração", ela explica.

Os ambientes interiores das casas retratadas em cena privilegiam amplitude, como o apartamento citado pela diretora, uma cobertura no Sumarezinho.

As locações alcançam também a cidade de Santos, origem de Amanda e onde moram seus pais, vividos por Fábio Assunção e Mariana Lima, e a irmã caçula, interpretada por Manu Morelli. Há sequências magistrais no Porto de Santos, onde a mãe trabalha, que servem de moldura para o seu sofrimento e reflexão sobre os problemas familiares.

A atriz Mariana Lima em cena
Mariana Lima em cena da série Onde Está o Meu Coração no porto de Santos - Fábio Rocha/Divulgação

"O deslocamento do litoral como um espaço mais arejado pra selva de pedra também está muito impregnado na história", fala Moura.

Todas as escolhas cenográficas afetam e são afetadas pelo drama de Amanda, com participação de autores e diretores sobre as opções feitas, mas Luísa Lima faz questão de citar o nome de Marcos Pedroso, diretor de arte, como alguém fundamental na equipe para as pesquisas que levaram às decisões finais.

Após visitar alguns hospitais para encontrar o local que serviria ao expediente de Amanda como médica, no exercício de seus plantões, Pedroso encontrou o que buscava no edifício que abriga o Centro Paraolímpico na cidade, todo ornamentado de vidraças e rampas.

"A metáfora dos vidros mostra uma sociedade envidraçada, que parece que gera transparência, o que não necessariamente acontece, não necessariamente tem a compreensão, e tudo que vive, para dentro ou para fora, promovendo um jogo de contradição em que nem sempre a gente consegue enxergar", argumenta Lima.

"Por meio da arquitetura gigantesca de São Paulo, a gente queria acentuar o estado de desamparo e solidão, por isso as locações são em geral grandiosas, assim como a própria cidade já desperta isso, com milhões de pessoas, parece que você não vai dar conta dessa vida, de tantos afetos. Isso incorpora muito o nosso mundo contemporâneo, da alta performance, da alta produtividade, onde a gente precisa ser cada vez mais perfeito e alcançar objetivos."

São Paulo inspira tudo isso, resume a diretora.

"A escolha pelo hospital no Centro Paraolímpico acentua essa concepção de lugar assustador por sua grandeza, e representa um trabalho pelo qual ela é apaixonada, mas ela não suporta essa pressão diária."

Em meio a todo esse processo, também é importante repetir algo que os autores ressaltaram muito na época em que a série foi lançada no GloboPlay: "Onde Está o Meu Coração" aborda a dependência química de modo a evidenciar que quando alguém adoece deste mal, a família toda adoece junto.

Por falar em Moura e Goldenberg, vale notar que os dois tiveram em São Paulo sua primeira história após vários sucessos na TV, em geral localizados no Nordeste, como "Amores Roubados", "O Canto da Sereia" e "Onde Nascem os Fortes". Para este ano, os dois já entregaram à Globo mais um script destinado ao Nordeste, "Guerreiros do Sol", que revisita o universo do cangaço de Maria Bonita e Lampião.

"Em função da personagem, acho que a experiência, para o bem e para o mal, atinge o seu máximo em São Paulo, que é importante para situar o drama da Amanda, como ela lida com a cobrança de sucesso, de êxito no trabalho, no casamento, e as grandes dificuldades de lidar com a vida adulta, isso atinge qualquer jovem", diz Goldenberg.

O problema da dependência "chega em limites mais extremos porque, no caso dela, ela está lidando com a vida das pessoas", completa. "Em São Paulo a gente viu um universo de competição, de médicos disputando pacientes, médicos de todo o Brasil."

Já a casa da família de Santos foi encontrada em São Paulo, mas ela também tem espaços amplos e um ar "old fashion", como diz a diretora. "Ela tem isso porque traz memórias para a personagem, era importante criar essa relação com o que ela deixou para trás, de Santos, em relação ao mundo assustador de uma São Paulo de linhas retas, envidraçada", reforça Lima.

Sala de casa usada como cenografia para série de TV
Casa de David (Fábio Assunção) e Sofia (Mariana Lima) exigiu negociação pessoal da diretora com dono do imóvel na série 'Onde Está o Meu Coração'. - Fábio Rocha/Divulgação

A casa, embora grande, é acolhedora, e mostra um pouco das angústias daquela família. Na época de gravar, Luísa Lima foi pessoalmente tentar negociar a locação com o dono, a quem explicou a grande importância daquele cenário no enredo.

E até um apartamento onde Amanda se droga é um imóvel amplo, mas "labiríntico", como diz a diretora, um local de "uma riqueza passada", ou uma "cracolândia para pessoas com alguma capacidade financeira melhor, de uma classe social mais alta". A médica não chega de imediato às ruas que recebem tantos desses doentes em São Paulo, até porque quando isso ocorre, configura-se claramente um fundo de poço para ela.

Há ainda a bela casa de Vivian (Camila Márdila) e o escritório de Miguel (Daniel Oliveira), que foi gravado na Praça Villaboim, em Higienópolis. Jovem arquiteto de sucesso, o personagem é mais um elo entre a cenografia e a história.

Casa com piscina usada como cenário de TV
Detalhes do cenário da casa de Vivian (Camila Márdila) na série Onde Está o Meu Coração, do GloboPlay. - Fábio Rocha/Divulgação

A série focaliza muito o que seus criadores chamam de "sociedade do cansaço" e de uma metrópole que não dorme, como ocorre na maioria das grandes metrópoles mundo afora.

O trabalho teve um significado ainda maior para Fábio Assunção, que sentiu as dores da dependência química em sua trajetória real e se sentiu contemplado pela oportunidade de discutir o assunto de modo tão delicado em uma série dramatúrgica. O ator auxiliou Letícia Colin e a equipe ao longo da produção, a partir de sua experiência no enfrentamento da doença.

Apesar do tema, tão delicado e necessário ao conhecimento de todos nós, o drama encontra no script a sua redenção, mas não chega a ser exatamente um celebrado "final feliz", o que só faz da série uma produção mais interessante.

Como resume a diretora, "somos falhos, incompletos e ao mesmo tempo podemos ser tão potentes, no sentido de alteridade, de amparar a dor do outro, de tentar ajudar. É sobre isso: solidariedade, capacidade de a gente dar amor para as pessoas".

"Onde Está o Meu Coração" vai ao ar todas as terças, após o paredão do BBB, e tem supervisão artística de José Luiz Villamarim.

Zapping - Cristina Padiglione

Cristina Padiglione é jornalista e escreve sobre televisão. Cobre a área desde 1991, quando a TV paga ainda engatinhava. Passou pelas Redações dos jornais Folha da Tarde (1992-1995), Jornal da Tarde (1995-1997), Folha (1997-1999) e O Estado de S. Paulo (2000-2016). Também assina o blog Telepadi (telepadi.folha.com.br).

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