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Diversão
Descrição de chapéu Artes Cênicas LGBTQIA+

'The Boys in the Band' mostra que cena gay de 1968 não é tão diferente da atual

Aproveitando 'boom' de peças LGBTQIA+, clássico off-Broadway ganha nova montagem em SP

Cena da peça 'The Boys in the Band - Os Garotos da Banda', que entra em cartaz no teatro Procópio Ferreira - Karime Xavier/Folhapress
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São Paulo

"Quem é que vai vir?", quer saber o ex-namorado que ajuda o dono do espaço a arrumar tudo para a festinha que vai acontecer dali a pouco. "Acho que você conhece todo mundo. São as mesmas fadinhas velhas e cansadas que você vê por aqui desde o primeiro dia."

Fosse em 2023, o grupo de amigos gays poderia estar reunido no apartamento de um deles para assistir a clipes de divas pop ou fazer um esquenta antes da balada. Não é o caso. Estamos na Nova York da era pré-Stonewall. As opções para comemorar livremente o aniversário de um deles eram limitadas.

É nesse período que se passa "The Boys in the Band - Os Garotos da Banda", que estreia na terça-feira (31) no teatro Procópio Ferreira, em São Paulo. A nova montagem brasileira revisita o texto de Mart Crowley, que debutou em 1968 no circuito off-Broadway e causou fortes reações —para o bem e para o mal— por apresentar personagens gays com uma gama de nuances até então inédita.

O diretor Ricardo Grasson explica que chegou-se a cogitar uma atualização do texto, mas que ela se provou desnecessária dada a contemporaneidade do material —agora, eles apenas pretendem fazer uma rápida contextualização histórica antes do espetáculo. "Tem coisas que a gente avançou, que a gente evoluiu e que a gente conquistou, mas tem muita coisa ali que é completamente atual", diz ao F5.

Isso porque, na avaliação dele, a peça chega num momento em que o Brasil vive a ressaca de uma onda conservadora, ainda não dissipada por completo. Grasson cita, por exemplo, o projeto de lei que proíbe o casamento homoafetivo aprovado recentemente na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados. "A gente fica chocado como tem uma grande parte da sociedade que endossa esse tipo de coisa", diz.

Por outro lado, as perspectivas do ponto de vista do público são boas após outros textos de temática LGBTQIA+, como "Tom na Fazenda" e "A Herança", fazerem sucesso nos palcos paulistanos. Segundo Grasson, sempre houve interesse nesse tipo de espetáculo. "A gente que nunca investiu, acho que agora as pessoas estão tendo coragem de trazer esses textos à tona", avalia.

Mateus Ribeiro, que interpreta Michael, o neurótico anfitrião da festa, diz que "fazer arte já é político, mas uma peça como essa vai muito além". "Acho importantíssimo ter textos como esse, falando tão abertamente para os nossos e também para os que não são da comunidade, mas que precisam ouvir esse tipo de coisa e pensar sobre o assunto", afirma.

Sobre o lado ferino de seu personagem, que vai cada vez mais alfinetando os amigos próximos, ele diz que é preciso entender a fragilidade de quem ataca. "Ele não se aceita, não aceita a sexualidade dele, não aceita a aparência dele, tem muitas questões", avalia.

E compara com um acontecimento recente que chocou a sociedade: as cenas do espancamento do ator Victor Meyniel, captadas pelo circuito de segurança de um edifício, supostamente por homofobia. O porteiro do prédio, sentado ao lado, apenas observou a cena, sem intervir.

"O Michael é a pessoa que vê tudo acontecer e fica quieto", diz. "Ele é o único que, quando tem uma briga, vai para um canto e começa a beber. Essas pessoas existem até hoje. Ele é o porteiro."

Para Bruno Narchi, que vive o aniversariante Harold, houve evolução em alguns aspectos, mas em outros tudo continua igual. "Hoje temos muito mais liberdade e opções, mas esse lugar de crescer ouvindo o discurso de que não somos certos e que escolhemos um caminho errado ou pecador continua existindo muito forte", lembra. "É uma alegria muito grande ver que caminhamos e, ao mesmo tempo, muito triste perceber que a gente está falando das mesmas coisas ainda."

Ele destaca ainda o fato de o elenco ser quase todo formado por integrantes da comunidade LGBTQIA+, algo que não ocorreu na primeira montagem brasileira, realizada em 1970. Na época, estrelaram a peça nomes históricos do teatro brasileiro, como Raul Cortez, Walmor Chagas, Paulo César Pereio, Otávio Augusto, Gésio Amadeu, Dennis Carvalho e John Herbert, que produziu a peça ao lado da mulher, Eva Wilma. Em plena ditadura militar, era o que dava.

"Eu acho que termos essa relação com esse discurso traz outro impacto para o texto, outra compreensão", avalia Narchi. "A gente não pesquisou no Google o que é ser um homem gay, o que é receber um olhar preconceituoso, o que é sentir medo na rua, são coisas que a gente vive."

Leonardo Miggiorin faz o papel de Donald, o ex-namorado que ajuda a preparar a festinha. Ele conta que tentou buscar a singularidade do personagem, que perdeu o emprego e vive de gorjetas, para além de sua sexualidade. "Antes da sexualidade, a personalidade", diz. "Não é porque é gay que ele é igual aos outros."

Porém, ele admite que viver um homem gay, neste momento de sua carreira e de sua vida, seja algo mais tranquilo. "Quando fiz o Roni de 'Insensato Coração' [Globo, 2011] era muito angustiante, tinha crises de ansiedade no começo", conta. "Era como se aquilo se misturasse muito com a minha vida pessoal, apesar de ele ser bem diferente de mim. Só a sexualidade era um elo."

No começo deste ano, o ator passou a publicar fotos com o namorado nas redes sociais e a falar publicamente de sua orientação. "Eu tentava me proteger de algum tipo de rejeição que poderia impedir uma carreira de acontecer", comenta. "Isso não brotou do nada na minha cabeça, foi algo que eu fui percebendo no mundo. De como são tratados os atores que expõem determinada questão: a sexualidade."

"Mas chegou um momento em que eu pensei, bom, quem sou eu no cenário cultural? Eu sou só uma imagem ou eu sou uma pessoa que trabalha em prol de determinadas causas?", diz. "Eu também não sei o que está por vir. Eu olho com esperança no sentido de que muitos grupos já conseguem ultrapassar essa questão. O que é legal é estar em cena, trabalhando esses temas que são meus. Mas que, com certeza, também atingem muitas pessoas."

No elenco, o único assumidamente heterossexual é Caio Paduan, que dá vida a Alan McCarthy, um ex-colega de faculdade de Michael que liga para ele minutos antes da festa pedindo para passar na casa dele porque precisa lhe contar algo. Casado com uma mulher, ele não sabe que o amigo é gay, e começa a achar tudo ali bem estranho.

"Quando você entra parece que você traz uma nuvem pra festa", diz ter ouvido o ator sobre seu personagem. "Mas é emblemático, Alan é o representante desses homens que estão aí, que lideravam e que iam na mídia e falavam absurdos. Não gosto de misturar com futebol, mas com certeza ele estaria por aí com uma camisa da seleção."

Na montagem mais recente na Broadway (2018), bem como no filme de 2020 da Netflix baseado nela, o papel também foi vivido por um ator gay, Brian Hutchison. Tanto na primeira montagem quanto no filme de William Friedkin de 1970, o papel ficou com Peter White, que é hétero.

"Super poderia ser um ator gay, mas eu conversei bastante com o diretor e entendo que a escolha por mim foi pelo arquétipo", explica Paduan. "O Grasson falou: 'Caio, pouco me importa se você é hétero, gay, bi ou não. Eu preciso que você entregue esse perfil, que você construa esse homem dessa forma e que a gente consiga comunicar o que a gente tem que comunicar'."

O ator, que se define como "simpatizante" da causa LGBTQIA+, diz que tem sido um privilégio participar do processo e ouvir histórias que não faziam parte de sua vivência. "Eu melhorei como ser humano", diz. "Me fez olhar de outra forma para o outro e questionar por que alguns odeiam quem só quer amar. Por que você acha que você tem que opinar sobre se a pessoa deve casar ou não? O que você tem a ver?"

Até hoje, especula-se o que Alan contaria para Michael caso não tivesse um monte de gente na festa, o que nunca é revelado no texto. Paduan tem uma hipótese. "Na minha cabeça, ele traiu a esposa e a pergunta que eu deixo para o público é: com quem? Com outra mulher ou com um homem?", sugere.

Na peça, Alan tem especial desprezo por Emory, personagem de Heber Gutierrez. Trata-se de um decorador extremamente afeminado e sem papas na língua. "Ele é o único personagem que tem autorização, inclusive da direção, para causar em cena", orgulha-se o ator.

Gutierrez diz não ter pensado na possibilidade de críticas por parte da própria comunidade, que vez por outra fica ouriçada ao ver perfis de homens mais femininos em cena, acusando-os de caricatos. "Essas pessoas existem, né? Então, a gente vai negar a existência dessas pessoas?", questiona. "Temos nove pessoas em cena, e nove partituras diferentes. É muito importante ter esse personagem para que essas pessoas se sintam confortáveis e representadas também."

Emory acaba sendo vítima de agressão física. O ator diz que seu instinto pessoal seria revidar, mas que precisa se perguntar como o personagem, na época em que estava inserido, se comportaria. "Um dos motivos para essa peça estar sendo encenada nesse momento é perguntar: caminhamos ou não caminhamos? E, se caminhamos, que caminho foi esse? Porque a gente conquista os direitos, a gente conquista leis novas, mas continua não sendo respeitado no ambiente de trabalho, na rua, às vezes nem na própria família."

Na peça, Emory leva um garoto de programa de presente de aniversário para Harold. Trata-se de "Cowboy", que está sendo vivido por Júlio Oliveira. O ator diz que conversou com pessoas que vivem da prostituição, mas que entende que o personagem tem uma inocência que transcende sua função na trama. "O que eu acho mais bonito de ver é que, mesmo tendo sofrido tanto, ele não perdeu a pureza", diz.

"Ele deve ser um desses inúmeros do garoto que foi expulso de casa pelos pais ao falar sobre a sexualidade e foi obrigado a encontrar uma maneira de viver", imagina. "Tem uma hora que ele fala: 'Eu tento ser um pouco afetuoso, assim, não me sinto tão vagabundo'. É um puta tapa na cara da gente, né? Acho que com todas as disponibilidades de sexo casual, encontros muitos pontuais e amores líquidos, a gente encontra essa sinceridade dentro de alguém que faz do sexo sua profissão."

Oliveira diz encarar com tranquilidade os momentos em que aparece seminu no palco. "Não é uma cena erótica, é uma cena de nudez engraçada", avalia. "É legal a gente pegar o corpo e abrir um ponto de vista diferente para isso."

Outro que é praticamente ignorado por Alan é Bernard, vivido por Tiago Barbosa. O personagem traz à tona a discussão sobre outro tipo representatividade. Negro, ele é um recorte ainda mais marginalizado dentro da sociedade, sofrendo discriminação inclusive daqueles que deveriam ser seus pares.

Barbosa diz que não gostou da forma como o personagem era descrito inicialmente no texto. "A princípio, quando li, fiquei triste por saber que nos anos 1960 ainda havia pessoas que o homem negro se posicionava de uma maneira subserviente ou num lugar social passivo, quando na verdade foi uma década em que tivemos o Martin Luther King e o James Baldwin, a primeira mulher negra a entrar em uma universidade mista e o movimento dos Panteras Negras", lembra.

Contudo, ele diz que teve liberdade da direção para fazer as mudanças que achou necessárias. "Nós negros já estávamos lutando para ser vistos e não invisibilizados, o que acontece até hoje", explica. "Um homem branco nunca vai perceber, porque não faz parte da vivência social dele. Só nós sabemos o quanto lutamos para ter um lugar de fala, que só agora começa a existir."

Assim, o Bernard da nova montagem é mais solar e tem voz mais ativa, na avaliação dele. "É um Bernard que vai contra tudo aquilo que entra dentro do estereótipo do homem preto: de precisar ser o ativo, o masculino, o cara grandão, o fortão, o pauzudão", comemora.

Por outro lado, Alan se sente confortável conversando com Hank, personagem de Otavio Martins. Trata-se de um homem mais velho, que está em processo de divórcio de sua mulher e não dá nenhuma pinta. "Hank é quase uma ponte, é um cara que transita do meio hétero para o meio gay", explica o intérprete. "Acho que vai representar muita gente na plateia."

Alan ignora que Hank namora Larry, vivido por Caio Evangelista, já que eles são apresentados apenas como colegas de apartamento. O casal, no entanto, está em plena crise porque, enquanto um quer um casamento monogâmico, o outro quer uma relação aberta.

"O Hank tem essa característica de ser mais heteronormativo, então ele é possessivo, o cara é dele", conta Martins. "E o Larry é um cara do sexo livre. É preciso lembrar que essa peça foi escrita antes da Aids, então esse tipo de comportamento também era adotado na época."

Evangelista, que também é produtor e assina a adaptação do texto, diz que seu personagem representa a discussão de se os relacionamentos homossexuais devem reproduzir os padrões dos casais héteros. "Não se trata de um cara que quer fazer putaria apenas", afirma. "Ele ama o parceiro dele, mas quer ter essa liberdade, o que é muito legítimo."

O ator também celebra que, apesar dos percalços, no final o casal se acerta. "É uma mensagem de esperança", avalia. "Às vezes falta esse tipo de referência. Acho que muita gente que virá assistir vai se identificar e se questionar."

Sobre por que quis investir na produção desse espetáculo agora, ele conta que queria voltar aos palcos após os anos em que se dedicou a ser secretário de cultura de Mauá (na Grande São Paulo) com um espetáculo que contribuísse para a discussão.

"Depois do governo Bolsonaro, de todos os retrocessos que a gente viu no mundo e dessa volta do fundamentalismo com base na religião, achei que a gente precisava falar um pouco mais sobre o assunto", diz. "Esse espetáculo veio como um processo de cura, de aceitação e para eu me afirmar. Queria poder dizer: 'Sou gay e eu quero fazer coisas para a minha comunidade'."

"THE BOYS IN THE BAND - OS GAROTOS DA BANDA"

  • Quando De 31/10 a 20/12, às terças e quartas, às 21h
  • Onde Teatro Procópio Ferreira
  • Telefone (11) 3083-4475
  • Preço R$ 120 (inteira) / R$ 60 (meia)
  • Classificação 16 anos
  • Autoria Mart Crowley
  • Elenco Bruno Narchi, Caio Evangelista, Caio Paduan, Heber Gutierrez, Júlio Oliveira, Leonardo Miggiorin, Mateus Ribeiro, Otavio Martins e Tiago Barbosa
  • Direção Ricardo Grasson
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