Globo volta a censurar cenas de amor gay, num retrocesso inaceitável
Emissora trata o espectador adulto como uma criança a ser protegida
Em janeiro de 2014, a Globo fez um carnaval em torno do primeiro beijo gay exibido em uma de suas novelas. Há anos que a emissora vinha sendo cobrada por gravar cenas de carinho entre pessoas do mesmo sexo e depois cortá-las. Aproveitou, então, para capitalizar em cima do beijo de Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso), que marcou o último capítulo de "Amor à Vida".
O autor Walcyr Carrasco construiu com calma a história de amor entre os dois personagens e foi conquistando o público aos poucos. Quando o casal finalmente se beijou, muita gente vibrou como se fosse um gol em Copa do Mundo. A Globo até mostrou num de seus telejornais a reação entusiasmada de alguns espectadores. Reclamações de lideranças reacionárias se perderam em meio à euforia generalizada.
Desde então, personagens homossexuais e até transexuais se tornaram mais comuns na tela da emissora, até mesmo na faixa das 18 horas. As queixas de que a Globo quer destruir da família tradicional nunca cessaram, mas o beijo gay parecia normalizado em sua dramaturgia.
Vã ilusão. Desde maio passado, a Globo voltou a cortar beijos e cenas de intimidade entre pessoas do mesmo sexo. As primeiras "vítimas" foram Clara (Regiane Alves) e Helena (Priscila Sztejnman), da novela "Vai na Fé", atual ocupante da faixa das 19 horas. O beijo entre as duas chegou a ser anunciado no resumo dos capítulos da semana divulgado pela emissora, o que causou expectativa e frustração em diversos espectadores.
Procurada, a Globo respondeu apenas que "toda novela está sujeita a edição, uma rotina que atende às estratégias de programação ou artísticas". Em se tratando de "Vai na Fé", uma novela cuja protagonista é evangélica e que integra o esforço da emissora em se aproximar desse público, o corte até faz um certo sentido, vá lá.
Mas o que dizer da exclusão do beijo entre Olga (Camila Pitanga) e Ivona (Elisa Volpatto) na segunda temporada de "Aruanas"? Disponível há mais de um ano na plataforma Globoplay, a série vem sendo exibida pela Globo nas noites de terça, às 23 horas. É de se supor que só adultos assistam, mas a emissora preferiu tratá-los como criancinhas que precisam ser protegidas de certas verdades da vida.
Na última terça-feira (30), uma cena de sexo entre as mesmas personagens foi truncada, dificultando até mesmo a compreensão da trama. Quem quiser entender direito, que assine o Globoplay.
Já são cinco os cortes em menos de um mês, o que caracteriza um retrocesso inacreditável para uma empresa que, durante muito tempo, posou de paladina dos direitos LGBTQIA+.
A Globo realizou um trabalho inestimável na última década, por meio de novelas, reportagens e especiais, para mostrar à população brasileira que gays, lésbicas, transexuais e afins não são seres de outro planeta que devem ser combatidos e sim pessoas como quaisquer outras, cidadãos com plenos direitos. Nenhuma outra emissora da TV aberta fez nada parecido.
A que se deve então essa nova, ou melhor, velha postura? Jair Bolsonaro não está mais no poder, e a onda de conservadorismo que se abateu sobre o país já dá sinais de que está refluindo. Mas a Globo, talvez traumatizada pelos gritos de "Globolixo" de seus desafetos, parece disposta a reconquistá-los, nem que para isso precise alienar o público mais progressista.
Essa aparente mudança de rota acontece depois da saída de Ricardo Waddington e da nomeação de Amauri Soares para comandar os Estúdios Globo. Talvez não seja por acaso que o novo dirigente vem sendo chamado de "bispo Amauri" nos corredores do antigo Projac.
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