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Tony Goes

Apesar do que defende a série da Netflix, indícios históricos apontam que Cleópatra era branca

'Rainha Cleópatra' causa polêmica ao escalar atriz mestiça como a protagonista

Cena de 'Rainha Cleópatra', da Netflix - Divulgação
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Quem foi Cleópatra, a última faraó do Egito? Ao contrário de muitas figuras da Antiguidade, sabemos inúmeros detalhes sobre ela: o ano do nascimento, o ano da morte, a causa da morte, os nomes de seus pais, de seus irmãos e irmãs, de seus filhos.

A essa fartura de dados, junte-se a campanha de difamação movida por Otávio, o grande rival de Marco Antônio, general romano e último amante de Cleópatra. Disposto a virar a opinião pública dos romanos contra o casal, o futuro imperador Augusto difundiu as fake news de que a rainha era uma devassa, algo que chocava a moralidade da época.

A imagem hipersexualizada colou em Cleópatra, e foi como uma vamp sedutora que ela costumou ser representada nos filmes de Hollywood. De Theda Bara, ainda nos tempos do cinema mudo, a Elizabeth Taylor, a mais famosa encarnação, a Cleópatra das telas sempre teve pele alva. A interpretação mais ousada coube à série "Roma", da HBO, que a mostrou como uma viciada em drogas de cabelos curtos –mas ainda branca, e com consideráveis poderes de sedução.

No dia 10 de maio, estreia na Netflix "Rainha Cleópatra", uma série no formato "docudrama", que mescla cenas dramatizadas com depoimentos de especialistas. O programa se insere no projeto "Rainhas Africanas", produzido e narrado pela atriz Jada Pinkett Smith, que pretende resgatar e valorizar as histórias das grandes monarcas negras. Uma primeira série, sobre a angolana Nzinga, já está disponível na plataforma.

"Rainha Cleópatra" gerou furor na internet assim que foi divulgado que a última faraó seria vivida pela atriz britânica Adele James, que tem a pele parda e os cabelos crespos. No trailer, uma senhora negra não identificada –talvez uma historiadora– diz que a avó dela não se importava com o que fosse ensinado na escola, porque Cleópatra era negra.

A notícia atiçou os racistas de plantão, que encheram de ofensas as redes sociais de Adele James. Mas também reavivou um debate que já dura séculos: afinal, qual era a aparência real de Cleópatra?

As poucas estátuas, moedas e pinturas que resistiram ao tempo a retratam como uma mulher de nariz afilado e cabelos ondulados. É preciso um pouco de imaginação para enxergar uma mulher preta, ou mesmo parda, nessas imagens.

Mas será que Cleópatra não teria sido vítima de "whitewashing", a prática de ocultar a ascendência negra de uma pessoa célebre, pela qual passaram o escritor francês Alexandre Dumas e o brasileiro Machado de Assis?

Acho improvável. Se ter a pele escura fosse algo visto como ruim pelos antigos romanos, não tenham dúvidas: Otávio teria exposto a suposta negritude de Cleópatra em sua campanha de fake news. Mas não foi o que aconteceu.

Cleópatra 7ª foi a última monarca da dinastia ptolomaica, fundada cerca de três séculos antes de Cristo por Ptolomeu, um general macedônio de Alexandre, o Grande. A ele coube o Egito quando o imenso império helênico foi desmembrado após a morte de seu fundador.

Para serem aceitos em seu novo país, os ptolomaicos logo aderiram a uma prática tradicional da realeza egípcia: o casamento entre irmãos, uma tentativa equivocada de se manter "pura" a linhagem real. Essas uniões incestuosas geraram inúmeros descendentes defeituosos ao longo de milênios, como atestam diversas múmias.

Isso nos autoriza a dizer que Cleópatra, portanto, era 100%, descendente apenas de macedônios, um povo do norte da Grécia, talvez com uma pitada de selêucidas da Pérsia, país por onde Ptolomeu passou antes de chegar ao Egito?

Não, porque os faraós ptolomaicos também tinham várias mulheres e concubinas, e filhos com a maioria delas. Sabemos o nome da mãe de Cleópatra –Cleópatra 5ª–, mas não sua etnia. Um sinal de que o assunto não era importante àquela época.

Sim, os povos da Antiguidade eram racistas e se sentiam superiores a seus vizinhos e inimigos, mas não exatamente como nós. Os antigos gregos, por exemplo, diziam que as línguas não gregas soavam como grunhidos de animais –"bar bar", o que deu origem à palavra "bárbaro".

Mas o racismo antigo não estava ligado à escravidão. Escravizados eram prisioneiros de guerra, não importava a cor de suas peles. A própria divisão da humanidade em "raças", nunca comprovada cientificamente, data do século 18.

A diretora de "Rainha Cleópatra", a iraniana Tina Gharavi, afirmou numa entrevista à revista Variety que "acima de tudo, precisamos admitir que a história de Cleópatra é menos sobre ela e mais sobre quem somos nós".

Ao dizer isto, Gharavi assume que o objetivo por trás da série é político, e não apenas informativo. "Rainha Cleópatra" está mais interessada em inculcar a controversa noção de que Cleópatra era negra do que em difundir a realidade apontada pelos indícios históricos, incompleta que esta seja.

O resultado é uma controvérsia que pode se voltar contra o próprio movimento negro. O Ministério de Antiguidades do Egito já rebateu a Netflix, afirmando que a rainha "tinha pele branca e traços helênicos". Um advogado egípcio está processando a plataforma, e uma petição online já reúne 40 mil assinaturas pedindo o cancelamento da série.

Então os egípcios atuais são racistas? São, antes de mais nada, um povo decidido a preservar sua identidade étnica e cultural, bastante distinta da África subsaariana. O país tem uma significativa população negra, mas a maioria da população tem pele morena e olhos negros –bastante parecida, aliás, com a do Egito antigo, apesar das muitas invasões estrangeiras ao longo do tempo.

Quem prefere uma Cleópatra negra são ativistas americanos, no intuito de criar exemplos históricos positivos para uma população que foi privada deles por séculos. Mas, como em todos os movimentos sociais, exageros são cometidos de vez em quando. Insistir que Cleópatra era negra é apenas uma declaração política, sem muita base nos documentos históricos de que dispomos hoje.

De qualquer forma, é injusto julgar uma série só pelo trailer. "Rainha Cleópatra" estreia no dia 10 de maio, e só então poderá receber uma avaliação mais embasada.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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