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Tony Goes

Corte de pessoal mostra que a Globo se tornou uma empresa como qualquer outra

Emissora deixou de ser um caso à parte, em que as demissões eram raras

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Há cerca de dez anos, quando eu era roteirista do Video Show, certa vez vi um diretor da Globo dar uma bronca homérica numa secretária. Pensei, coitada, essa aí vai para o olho da rua.

Não foi. A moça simplesmente mudou de núcleo. Foi transferida para a produção de outro programa da casa. A Globo não tinha o hábito de demitir ninguém. Não fazia parte de sua cultura corporativa.

Era uma situação anômala e em total contraste com o resto do mercado de comunicação. Em outros veículos da mídia e em agências de propaganda, os cortes de pessoal sempre foram frequentes, a ponto de receberem o carinhoso apelido de "passaralho". Bastava a empresa perder um cliente importante ou pontinhos no Ibope para se criar um clima de terror totalmente justificado: as demissões estavam por vir, e vinham mesmo.

Mas a Globo nadava em dinheiro desde o final da década de 1970, pelo menos, quando se tornou a líder incontestável da TV brasileira. Profissionais eram contratados a peso de ouro para ficar em casa, sem estarem ligados a nenhum projeto novo. Novelas estrangeiras de sucesso eram adquiridas e guardadas na gaveta, para que as concorrentes não as exibissem.

Certa vez, Boni mandou regravar toda uma caríssima cena de festa de uma novela só porque não gostou de um arranjo de flores que fazia parte do cenário.

A emissora podia agir assim porque, durante muito tempo, abocanhou mais da metade de todas a verbas publicitárias do Brasil –não só as destinadas à televisão, veja bem, mas ao mercado como um todo. Enquanto o resto do mundo saltava de crise em crise, a Globo viveu mais de três décadas de bonança.


A audiência da emissora era descomunal para qualquer padrão internacional, com atrações que frequentemente marcavam mais de 50 pontos. Nos Estados Unidos, onde a concorrência é acirrada, um programa que marque dois ou três pontos no horário nobre é considerado um grande sucesso. Em nenhum outro país um canal privado dispunha de uma fatia tão grande do mercado.

Os tempos mudaram, mas a Globo sempre agiu rapidamente para continuar na liderança. A emissora conseguiu, através de lobbies no Congresso, retardar em uma década a chegada da TV a cabo no país. Quando esta finalmente se instalou por aqui, a Globo correu para dominar também este mercado e criou a Globosat, com dezenas de canais pagos –hoje conhecidos como Canais Globo.

Depois surgiu uma ameaça muito maior: a internet, que trouxe consigo as redes sociais e as plataformas de streaming. Toda uma geração cresceu embalada pelas séries e sem o hábito de seguir novelas, quaisquer novelas, ao contrário de seus pais e avós.

Em foto montagem, quatro pessoas são colocadas lado a lado
Marcelo Canellas, Mônica Sanches, Eduardo Tchao e Flavia Januzzi, demitidos da Globo - Reprodução/Montagem


Novamente, a Globo se mexeu. Criou seu próprio serviço sob demanda, o Globoplay, que recebe até hoje investimentos maciços. Mas as verbas publicitárias se pulverizaram entre centenas de novos "players" –entre eles, influenciadores digitais como Felipe Neto e Casemiro.

Os cortes se tornaram inevitáveis, e não só no pessoal. Na época em que eu trabalhava no Projac, hoje rebatizados de Estúdios Globo, havia dezenas de cursos gratuitos à disposição dos funcionários, sobre os mais diversos assuntos. Agora não há mais.

Parte da internet entra em êxtase quando são anunciadas demissões coletivas, como aconteceu ontem. Acham que a "Globolixo" está indo à matraca e que em breve dependerá de verbas do governo federal, que nunca foram importantes para seu faturamento. Além disso, ignoram que as concorrentes também vêm dispensando profissionais, inclusive as plataformas de streaming.

É uma pena que tantos profissionais tarimbados, alguns com décadas de casa, de repente se vejam desempregados. Se serve de algum consolo, cabe lembrar que a Globo sempre foi corretíssima na hora de pagar rescisões a funcionários demitidos.

Também é importante perceber que o mercado do audiovisual está passando por um violento processo de ajuste no mundo inteiro, depois da explosão do streaming há cerca de cinco anos. Na ponta do lápis, não há público nem dinheiro suficientes para tantos serviços: a conta não fecha. Mesmo assim, nesses tempos confusos, a Globo está mais preparada do que qualquer outra emissora brasileira para sobreviver à turbulência.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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