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Tony Goes

Personagens complexos fazem de 'Treta' mais que uma comédia sobre vingança

Minissérie da Netflix já está entre os melhores programas do ano

Cena da série Treta com Ali Wong como Amy e Steven Yeun como Danny
Cena da série Treta com Ali Wong como Amy e Steven Yeun como Danny - Andrew Cooper/Netflix
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Quem nunca perdeu as estribeiras numa discussão no trânsito? Essas brigas bobas servem de pretexto para darmos vazão a tensões reprimidas, descarregando no outro motorista a raiva que sentimos por outra razão qualquer.

O potencial tragicômico desses embates foi percebido há muito tempo pelo cinema, e já rendeu filmes como "Um Dia de Fúria" e "Relatos Selvagens".

O ator Michael Douglas em cena de 'Um Dia.de Fúria' - Divulgação


Agora é o streaming que usa uma briga de trânsito como ponto de partida para uma ótima minissérie: "Treta", disponível na Netflix desde o dia 6 de abril. Os 10 episódios, com pouco mais de meia hora cada um, foram produzidos pelo A24, o mesmo estúdio independente responsável por "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo", o grande vencedor do último Oscar.

(Para quem ainda não assistiu, atenção, daqui para baixo alguns spoilers)


A ação se passa em Los Angeles, e os dois protagonistas são de origem oriental. Daniel, filho de coreanos, é um empreiteiro à beira da falência, sem dinheiro nem perspectivas. É interpretado por Steve Yeun, indicado ao Oscar de melhor ator em 2021 pelo filme "Minari". Amy, vivida pela comediante Ali Wong, vem de uma família chinesa e dedica tanta energia à sua sofisticada loja de plantas que seu marido e sua filha pequena já estão se ressentindo.

Os dois se cruzam no estacionamento de uma megaloja. Daniel sai de uma vaga em marcha à ré e sua pick-up quase bate no luxuoso SUV dirigido por Amy. Os dois trocam palavrões e gestos obscenos e iniciam uma perseguição cômica por um bairro elegante, destruindo um jardim no caminho.

Ninguém sofre um arranhão sequer –nem os humanos, nem seus carros. Mas o entrevero é o bastante para que uma semente de ódio germine no coração de Daniel. Ele descobre o endereço de Amy, consegue ser recebido sem que ela desconfie de quem se trata e se vinga fazendo uma sujeirada no lavabo da empresária.

"Treta" poderia facilmente descambar para a caricatura fácil, com seus personagens agindo segundo a lógica dos desenhos animados. Mas a série vai muito além disso, mergulhando nas complexidades de Amy e Daniel.

Ele se aproxima do marido dela, um artista de origem japonesa, e os dois se tornam confidentes. Ela adota uma identidade falsa no Instagram para seduzir o irmão dele e acaba ela mesma tendo um caso com o rapaz.

Para complicar, Daniel ainda tem um primo recém-saído da cadeia, mas que já está planejando seu próximo golpe. E Amy precisa lidar com a sogra, não exatamente uma aliada, e com a bilionária fútil que pretende comprar sua loja.

Os dois sofrem pressões por todos os lados. Pode-se dizer que ambos ficaram aquém das expectativas de seus pais, algo grave na cultura oriental. Mas não é preciso ter raízes asiáticas para nos identificarmos com eles. Todos nós enfrentamos problemas parecidos no dia a dia, em maior ou menor grau.

Todos os títulos dos episódios de "Treta" vêm de citações de autores como Franz Kafka, Joseph Campbell e Simone de Beauvoir e aparecem sobrepostos a telas de David Choe, o ator que encarna Isaac, o primo bandido de Daniel. Esses detalhes dão um toque de sofisticação a uma história que vai se tornando cada vez mais angustiante, sem jamais perder o senso de humor.

Steve Yeun e Ali Wong estão fantásticos em seus papéis. Outro destaque do elenco vai para Maria Bello, a ricaça que quer fazer negócios com Amy. O público da Netflix também vai gostar de ver Ashley Park, a Mindy de "Emily in Paris".

Ashley Park em cena de 'Emily em Paris' - Stéphanie Branchu/Netflix


"Treta" poderia ser um pouco mais curta, e os dois últimos episódios, focados no confronto final entre os dois protagonistas, destoa um pouco do tom galhofeiro dos demais. Mas roteiro, direção e atuações fazem com que, desde já, a série garanta um lugar entre as melhores do ano.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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