A fracassada tentativa da Globo de dar uma saída honrosa para Marcius Melhem
Emissora minimizou a gravidade dos fatos, gerando revolta entre as vítimas do comediante
Os tempos mudaram. A sociedade não tolera mais certos tipos de comportamento. Não dá mais para sufocar um escândalo com panos quentes e fingir que a vida continua como antes.
Que o diga a TV Globo. A emissora até que estava reagindo cada vez mais rápido, e de forma mais incisiva, aos casos de racismo e assédio que eclodem em seu elenco. William Waack foi sumariamente demitido depois que surgiu um vídeo em que o jornalista faz uma piada preconceituosa. José Mayer entrou na geladeira quando a figurinista Su Tonani acusou o ator de abuso. Não fez mais nenhuma novela, até seu contrato expirar e não ser renovado.
Essa mesma tática foi usada com Marcius Melhem. Em dezembro de 2019, o então chefe do departamento de humor da Globo foi acusado de assédio moral por Dani Calabresa e outras atrizes sob seu comando. Em março deste ano, tirou licença para acompanhar o tratamento médico de uma de suas filhas nos Estados Unidos. Em agosto, sua saída definitiva da emissora foi comunicada à imprensa através de um e-mail eivado de elogios à sua trajetória profissional, sem nenhuma menção à barafunda em que se envolveu.
Não deu certo. As muitas vítimas de Melhem não gostaram do desfecho anódino do caso, e foram reclamar à cúpula do canal. O movimento logo conseguiu testemunhas e apoiadores, formando um grupo de cerca de 30 pessoas. Também constituiu advogado. Neste domingo (25), a Folha publicou uma entrevista de Mayra Cotta, que representa seis atrizes, a Mônica Bergamo.
Como sempre, o jornal também deu voz ao outro lado. Procurado, Marcius Melhem disse que vai provar sua inocência. E a Globo garantiu que seguiu todas as regras de compliance e realizou uma rigorosa investigação interna.
A lição que fica para a emissora é simples: só isto não basta. É preciso dar uma satisfação pública às mulheres que foram molestadas pelo ex-diretor. Essa satisfação não veio até agora, e o resultado está aí: o escândalo segue vivo, e agora atinge a própria Globo.
Não é fácil se adaptar ao mundo moderno. Minorias que sempre “souberam seu lugar” agora exigem representatividade. Falas e atitudes antes consideradas inofensivas agora rendem processos na Justiça. Ninguém mais vai aguentar nada calado, a começar pelas mulheres.
Esta é a grande novidade do século 21. As mulheres estão em todas. Já são maioria nas universidades. Agora querem mais espaço nas empresas e na política. Quem resistir a essa guinada histórica vai perder dinheiro e reputação.
Foi o que aconteceu com o Santos, que contratou Robinho mesmo sabendo que o jogador havia sido condenado na Itália por um crime sexual. As redes sociais reagiram, os patrocinadores intervieram e o time se viu obrigado a recuar. Robinho pode espernear à vontade e jurar que Jesus está do seu lado. Todos sabemos que não está.
Marcius Melhem liderou uma mudança geracional no humorismo da Globo. Rejuvenesceu a forma e o conteúdo, lançou novos talentos e, ao contrário do que acontece nas outras emissoras, não se acovardou diante do governo Bolsonaro, tornando-o alvo preferencial de suas piadas.
Nada disso, é óbvio, autoriza Melhem a assediar ninguém moral e sexualmente. O mais incrível é ele ter feito isto por tanto tempo, com tantas mulheres diferentes. Sua certeza de impunidade faz desconfiar que exista um ambiente propício aos abusos entre os muros da emissora.
Os tempos mudaram, mas não o suficiente. É lamentável, mas também compreensível, que as seis atrizes representadas pela advogada Mayra Cotta prefiram se manter no anonimato. Se elas se expusessem, estariam sendo xingadas de vagabundas ou coisa pior, nas redes sociais e na vida real. Ainda temos muito chão pela frente.
ERRAMOS: O conteúdo desta página foi alterado para refletir o abaixo
Su Tonani é figurinista, e não maquiadora. O texto foi corrigido.
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