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Zapping - Cristina Padiglione

O que está por trás da aproximação da Globo com os evangélicos?

Emissora, que já teve vilão espelhado em Edir Macedo, nunca se empenhou tanto em falar àquele que será o maior grupo religioso do país

Sol (Sheron Menezzes) é uma cantora gospel em 'Vai na Fé', novela das sete - João Miguel Júnior/Globo
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São Paulo

Ao lançar uma novela com temática positiva aos evangélicos, protagonizada por uma mulher negra, "Vai na Fé", que estreia nesta segunda-feira (16), contempla as três principais demandas anunciadas pela direção da Globo a roteiristas, criadores e diretores do mercado audiovisual há menos de um ano.

Em uma apresentação feita a esses profissionais do Rio2C, evento anual dedicado ao segmento, no Rio, em abril de 2022, o diretor da TV Globo e Afiliadas, Amauri Soares, exibiu gráficos e indicadores que mostravam o desenho comportamental do país naquele momento pós-pandêmico.

Soares sublinhou três pontos resultados de uma série de pesquisas demográficas feitas sob os moldes do interesse comercial da emissora, cuja vocação, como TV aberta, é alcançar o maior número de pessoas:

1. O Brasil deixaria de ser um país de maioria católica ainda em 2022, para se tornar uma nação de maioria evangélica em até dez anos, no máximo;
2. De cada três famílias brasileiras, uma é comandada por uma mãe preta, na maioria das vezes, solteira;
3. A crise econômica trazida pela pandemia havia reagrupado núcleos familiares que já estavam segmentados em residências separadas, trazendo de volta para o mesmo teto avô e neto, pai e filho, cunhados e afins, formando famílias multigeracionais.

Em "Vai na Fé", Sol, a mocinha vivida por Sheron Menezzes atende a quase todas essas características. Ela só não é mãe solteira, mas é cantora gospel em igreja evangélica, religião da mãe, vivida por Elisa Lucinda, e sustenta a família com a venda de quentinhas. É uma personagem batalhadora, como é toda mocinha e como era também Paloma, costureira, heroína criada pela mesma autora da vez, Rosane Svartman, então com Paulo Halm, em seu último folhetim, "Bom Sucesso".

A diferença é que Paloma era a loira Grazi Massafera. Agora temos uma negra nesse posto.

De três anos para cá, em especial, a Globo tem acelerado o processo de diversidade e inclusão racial em seus elencos, quebrando a hegemonia branca nos papéis de protagonistas e ampliando suas opções para personagens que fogem de estereótipos, ou seja, não são feitos pela medida da cor, abrindo o leque para situações que são de todos nós, mas que podem ser enriquecidas em cena pelo debate racial, de modo pontual.

Uma mulher como Vitória, por exemplo, em "Amor de Mãe", poderia ser uma atriz branca ou de qualquer origem étnica, mas a presença de Taís Araújo no papel abria a oportunidade de salpicar questões raciais aqui e ali, ao longo da trama de Manuela Dias, sem que esse fosse o ponto central daquela personagem.

A inclusão religiosa, no entanto, é algo mais recente na política estratégica da Globo, sempre mais afinada com o catolicismo, principalmente na dramaturgia. Os evangélicos, ou religiões pentecostais, de modo geral, há algum tempo já não são representados de modo pejorativo, mas nunca protagonizaram um enredo de novela na casa.

É natural que este segmento tenha buscado um espelho mais fiel de suas crenças na Record, rede que mais cresceu no universo da TV aberta dos anos 1990 para cá, regida por Edir Macedo, criador da Igreja Universal. Mas por pelo menos duas décadas, a Globo não só não se esforçou para parecer mais simpática aos evangélicos, como produziu histórias capazes de gerar uma guerra com os neopentecostais.

O ápice dos conflitos veio na esteira de "Decadência", minissérie de Dias Gomes, em 1995, cinco anos após Macedo ter comprado a Record, demonstrando, desde então, sede de alcançar o calcanhar da Globo em audiência. Foi a única produção com protagonismo evangélico na Globo, e deu-se da forma mais negativa possível, a ponto de a Igreja Universal ter processado a rede da família Marinho na época.

Mariel, personagem vivido por Edson Celulari, crescia adotado por uma família católica, mas criado pela empregada da casa. Adulto, tornava-se motorista da família, e se envolvia com Carla, a caçula da casa, sendo expulso da mansão sob acusação de estupro.

O tempo passa e, ao ser levado por uma namorada a um culto numa igreja neopentecostal, Mariel encontra na igreja a salvação para seus problemas. Cinco anos mais tarde, ele se torna milionário após fundar a própria igreja, o Templo da Divina Chama, enquanto seus antigos patrões empobrecem e lhe propiciam chances de vingança.

Havia frases inteiras de Macedo na boca do personagem.

Esse é um perfil que a Globo quer deixar para trás, assim como a predominância de imagens sacras, algo inaceitável entre evangélicos, em suas novelas e séries. Evidências da pluralidade religiosa do país, ao contrário do que pratica a Record em toda a sua programação, seguirão em cena, mas a tendência é que a predileção católica perca primazia, ao menos na ficção.

Zapping - Cristina Padiglione

Cristina Padiglione é jornalista e escreve sobre televisão. Cobre a área desde 1991, quando a TV paga ainda engatinhava. Passou pelas Redações dos jornais Folha da Tarde (1992-1995), Jornal da Tarde (1995-1997), Folha (1997-1999) e O Estado de S. Paulo (2000-2016). Também assina o blog Telepadi (telepadi.folha.com.br).

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