Por que as domésticas perderam espaço nas novelas?
Tão reverenciados em folhetins clássicos, funcionários de casa são personagens hoje excepcionais na TV
Donas de grande espaço em cena nas telenovelas e séries brasileiras e muitas vezes responsáveis por grandes revelações na história, as domésticas perderam terreno na teledramaturgia nacional. Antes de mais nada, convém antecipar que isso está diretamente relacionado ao enxugamento dos elencos, hoje menores, e, consequentemente, de gastos com salários e cachês.
Evidentemente, sendo ficção, isso nada tem a ver com a lei que regulamentou o ofício, com normas precisas para o recolhimento de FGTS e a contabilização de horas extras da vida real.
Essa tese era propagada pelos patrões contrários à conquista de tais direitos, mas a questão não passa pela abordagem de funcionários domésticos nas novelas, nem por um hipotético efeito positivo da legislação. Os mais otimistas diriam que estamos finalmente nos aproximando do primeiro mundo e dando esse exemplo na teledramaturgia, a fim de mostrar que o progresso da educação tem tornado escassa a mão de obra para subempregos.
Mas a expectativa ainda passa longe da realidade, já que a informalidade impera com força absoluta sobre a lei.
O que tampouco falta em novela é gente ruim, até como função antagônica capaz de valorizar o herói da trama. Sempre há no enredo espaço para aquela gente capaz de ostentar riqueza e reclamar de pagar até INSS para um funcionário. Vejamos o caso de Zoé, personagem de Regina Casé em "Todas as Flores", folhetim de João Emanuel Carneiro disponível no GloboPlay.
Sempre de unhas irretocáveis e gigantes, ela pode ser cafona na decoração do apartamento, na escolha do figurino e no penteado, mas está claro que aquela mulher gasta muito com essa fachada toda e, com aquelas mãos, não limpa uma latrina. Em 45 capítulos, trecho já disponibilizado pelo serviço de streaming, não vi uma só faxineira, nem diarista, passar por aquela residência onde reina a poluição visual.
Na mesma novela, Ana Beatriz Nogueira, Fábio Assunção e Humberto Carrão habitam a mansão dos milionários da história, donos da super loja Rodes. Nunca se viu nem figurante servindo os ricaços à mesa. Humberto, personagem de Assunção, um dia avisou Zoé, sua amante, que havia dispensado os empregados para ficar a sós com ela. Quais empregados? Eles existem? O espectador nunca os viu.
As únicas figuras desse segmento que surgiram na trama foram as babás contratadas por Vanessa, a vilã de Letícia Colin, para justificar o descaso dela com o bebê que ela diz ser de Rafael (Carrão). Mas elas mal falam.
A presença de domésticos em cena, antes parte da composição dos núcleos mais ricos e que nem sempre tinham histórias próprias --eram os chamados personagens de situação--, desapareceu.
Em "Travessia", de Glória Perez, a ótima Luci Pereira, que vive Creusa, funcionária de Helô (Giovanna Antonelli), tem vida própria e poderia estar na trama sem depender da presença da patroa, mas sua presença no enredo serve como escada às divergências entre Helô e Stênio (Alexandre Nero) e tem função dramatúrgica.
Ainda em "Travessia", mais atuantes como figuras de situação do que Creusa, há Noémia Costa e Renata Tobelem, que dão vida às funcionárias de Moreti (Rodrigo Lombardi) e Guerra (Humberto Martins).
É A ECONOMIA, GENTE
O melhor diagnóstico para explicar a redução de funcionários domésticos, e mesmo porteiros ou motoristas em cena, é mesmo a economia a que as produções de TV foram submetidas nos últimos dez anos, obra da fragmentação da audiência e dos investimentos publicitários.
O fato é que novelas com mais de cem nomes, como acontecia nos idos de Manoel Carlos, um mestre em valorizar domésticos em cena, mas geralmente uniformizados e devidamente identificados em sua condição social pelo figurino, já não existem.
Pelo mesmo motivo, dificilmente se vê alguém com mais de dois filhos nos folhetins, a não ser quando a questão for crucial para a narrativa, como foi o caso de dona Lurdes (Regina Casé) em "Amor de Mãe" (2019), de Manuela Dias.
"Travessia", atualmente no posto de principal folhetim da TV, soma 48 nomes. "Pantanal", de Bruno Luperi, baseada na obra de Benedito Ruy Barbosa, tinha 27, além dos atores da primeira fase, que ficaram menos de um mês no ar.
Os domésticos hoje normalmente só entram em quadro para fazer diferença no rumo do script. Se não for por isso, já não entram simplesmente para compor a moldura do cenário rico, hoje sustentado só pela cenografia mesmo.
Um caso emblemático de doméstica capaz de afetar a trama é Ritinha, personagem que lançou Juliana Paes na TV, em "Laços de Família" (2000), de Maneco. Ela dava vazão à galinhagem de Danilo, papel de Alexandre Borges, oportunista casado com uma mulher mais velha, mas rica, vivida por Marieta Severo. Folgado, ele passava o dia se refestelando à beira da piscina, assediando a funcionária, que acabava grávida dele, um clássico.
A situação gerou uma série de abordagens para o autor, que discutia até a eclâmpsia, problema de pressão que acomete gestantes e pode levar à morte.
O mesmo Maneco também nos brindou com Zilá (Stella Maria Rodrigues), que aparentava ser só uma personagem de situação, escada para a empáfia de Branca Letícia (Susana Vieira) em "Por Amor" (!997). Mas Zilá tinha peso tão essencial na composição de Branca, que a solidão da vilã, ao final da trama, era coroada por uma cena icônica, em que a malvada convida a subalterna, humilhada por ela ao longo de cento e tantos capítulos, a se sentar no seu sofá para acompanhá-la no seu Dry Martini.
Outro caso de personagem sem história própria, que servia apenas à função de alavancar os personagens à sua volta, mas encantou o público, é o inesquecível Eugênio, mordomo vivido por Sérgio Mamberti em "Vale Tudo" (1988), de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères.
Ou seja, abrir mão de um funcionário doméstico em cena só porque aparentemente ele não tem uma missão própria pode ser um prejuízo para o conjunto da obra. É compreensível o enxugamento de núcleos e personagens nos folhetins, mas economizar até com uma figuração de diarista nas residências de luxo, como faz "Todas as Flores", soa inverossímil.
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