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Zapping - Cristina Padiglione
Descrição de chapéu

Melhor novela da Globo atualmente não sai de graça

Criada para a TV aberta e adaptada para o GloboPlay, 'Todas as Flores' se permite ousadia e dribla pasteurização de 'Travessia'

Os atores Letícia Colin e Caio Castro em cena na novela 'Todas as Flores'
Letícia Colin e Caio Castro na novela 'Todas as Flores', original GloboPlay - Reprodução
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São Paulo

Concebida originalmente para a faixa nobre da TV aberta, a novela "Todas as Flores" teve sua rota de produção deslocada para o streaming do grupo. Sorte de quem pode pagar para ver. Ao ganhar a tela do GloboPlay, o enredo de João Emanuel Carneiro se livrou de fazer um zilhão de concessões ao chamado gosto médio da massa que compõe a grande audiência da Globo no seu horário de pico. Com isso, permitiu-se ousar na forma e no conteúdo.

Com cinco capítulos disponíveis na plataforma desde o dia 19, a história centrada em Maíra, a jovem cega vivida por Sophie Charlotte, é superior em todos os sentidos a "Travessia", que lhe tomou a vaga na TV aberta.

As evidências estão no texto de João Emanuel, que dosa concisão e profundidade; na direção de bom gosto de Carlos Araújo, e num elenco que soma performances capazes de surpreender a plateia de uma forma que não ocorre no folhetim de Glória Perez.

Como bônus, também é a primeira novela brasileira com audiodescrição. Na noite desta segunda-feira, 24, a Globo exibirá o primeiro capítulo no horário da Tela Quente, ou seja, logo após "Travessia", tornando as comparações ainda mais latentes.

Pelo papel onde o autor rabiscou sua história, "Todas as Flores" poderia facilmente resvalar na mexicanização, tropeçando na overdose de melodrama e no maniqueísmo. Na prática, no entanto, a banda toca de outro jeito, e é esse é só o ponto central, mas não o único, da surpresa.

MOCINHA ESPERTA

Charlotte empresta à deficiente visual uma dignidade que normalmente falta a narrativas sobre pessoas cegas e sobre heroínas de modo geral. João Emanuel já deu provas de que suas mocinhas não são idiotas, mas a sabedoria de Maíra, alguém vista antes de tudo por suas limitações físicas, é quase terapêutica para o espectador, especialmente diante da irmã oportunista.

Nas linhas do autor, a bondade não é imbecil, e Judite, personagem de Mariana Nunes, só reforça isso. Em compensação, o mal esbanja humor ácido, o que só amplia o fascínio da plateia sobre os vilões do dramaturgo que pariu Carminha (Adriana Esteves), ícone na galeria das malvadas da TV.

Vanessa, a vilã master da vez, endossa de cara o quanto Letícia Colin merece estar entre as finalistas do Emmy Internacional deste ano --ela foi indicada pela ótima série "Onde Está o Meu Coração?", em cartaz no GloboPlay.

MACHO FRÁGIL

O único ponto frágil do núcleo central de "Todas as Flores" parece ser justamente o mocinho, Rafael, personagem do queridinho Humberto Carrão, herdeiro bem nascido e dono de compaixão empática com os cegos --quando criança, ele passou um ano sem enxergar, por causa de uma doença.

Rafael é descrito como alguém que há anos namora Vanessa, mas, ingênuo em medida pouco crível, é manipulado por ela de uma forma que nem Maíra, que acabou de conhecer a irmã, se permite ser.

SEXO SEM HIPOCRISIA

A presença no streaming dá à novela a chance de explorar sequências ousadas de sexo, item que vem perdendo espaço na faixa nobre da TV aberta, até em função de um público conservador que ameaça trocar a Globo pelas tramas bíblicas da Record. Viva o streaming.

Cenas entre Carrão e Charlotte, e Colin e Caio Castro (Pablo) dispensaram os pudicos lençóis que normalmente cobrem os corpos diante das câmeras. No caso do casal clandestino formado por Vanessa e Pablo, como mostra a foto que ilustra este texto, a beleza de ambos foi até valorizada pela luz do dia.

XÔ, ESTEREÓTIPOS

Corta para o drama de Nicolas Prates, o garçom boa praça que só vê sua vida se desgraçar a cada bloco, e a expectativa do espectador em torcer por sua vingança. Na prisão, ele é salvo por outra vítima de seu algoz, e então surge Ângelo Antônio.

E assim vamos tropeçando em atores que reforçam a percepção de que a melhor "novela das nove" hoje é a que foi reservada ao streaming, onde estão os melhores profissionais do ramo nesta temporada.

Isso porque nem chegamos ainda a Regina Casé. Por mais que soubéssemos que a ela caberia uma personagem rica e malvada, caráter que nunca esteve na sua galeria de papéis, é surpreendente vê-la na pele da nova rica Zoé, figura controversa, cafona, e sem pudor em defender apenas a própria pele.

João Emanuel adora subverter estereótipos, como já víamos desde Flora e Donatella --Patrícia Pillar e Cláudia Raia em "A Favorita". Para o público conservador que a Globo tenta acalentar, no entanto, parece mais garantido trazer Humberto Martins no papel de Humberto Martins, como acontece agora em "Travessia".

Já para quem está disposto a experimentar mais frescor nas narrativas, é um prazer ver Casé de forma inédita e dar de cara com Cássio Gabus, quase sempre fofo, oferecendo dinheiro para que um pobre coitado assuma um atropelamento.

O melhor é saber que tudo isso pode virar de um capítulo para o outro. Ninguém em novela de João Emanuel é o que parece ser, assim como na vida real.

Na contramão da superficialidade das produções de TV do dia a dia, o enredo ainda nos aproxima dos mais inconfessáveis elementos do ser humano. Tem o sujeito aparentemente gay que convida uma mulher para passar a noite com ele num quarto de hotel, e o músico ninfomaníaco que trata o sexo como doença.

Em cinco capítulos, a trama já nos mostrou por diversos ângulos que Caetano está muito certo quando diz que "de perto ninguém é normal".

Zapping - Cristina Padiglione

Cristina Padiglione é jornalista e escreve sobre televisão. Cobre a área desde 1991, quando a TV paga ainda engatinhava. Passou pelas Redações dos jornais Folha da Tarde (1992-1995), Jornal da Tarde (1995-1997), Folha (1997-1999) e O Estado de S. Paulo (2000-2016). Também assina o blog Telepadi (telepadi.folha.com.br).

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