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Carnaval
Descrição de chapéu Alalaô Entrevista da 2ª

Fui criança viada, sofri muita rejeição, mas venci, diz Milton Cunha

Comentarista de Carnaval da Globo conta que foi desprezado pelos pais na infância e triunfou na carreira graças ao jeito espalhafatoso

Milton Cunha segura um leque e sorri
Milton Cunha: 'Nunca abri mão do meu jeito de ser e de falar' - Fabrizia Granatieri / UOL
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Rio de Janeiro

É aquela voz engraçada da TV que responde, sem pressa, às 12 perguntas enviadas pela reportagem.

Ainda que seja em mensagens de áudio —e não por telefone, numa conversa direta—, não deixa de ser divertido ouvir Milton Cunha falar, com a intimidade de quem trata entrevistadores e estrevistados por "irmã" ou "amada", usando e abusando de gírias e de superlativos absolutos ("Divinérrimo, chiquérrimo") para contar suas histórias.

Ex-carnavalesco de escolas cariocas como Beija-Flor, União da Ilha, Unidos da Tijuca, São Clemente e Viradouro, e da paulistana Leandro de Itaquera, Cunha, 62, é há 11 anos comentarista de Carnaval da Globo e também faz reportagens pré-desfiles com personagens do mundo do samba.

Ele vai, literalmente, aonde a notícia está —outro dia mesmo, fez uma entrevista inteirinha abraçado a um cajueiro, no Jardim Botânico do Rio. É que a pauta era o caju, tema do samba-enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel, e também assunto do papo com Marcos Ferreira, carnavalesco da escola.

Graduado em psicologia, mestre e doutor em letras e em seu terceiro pós-doutorado, Cunha diz que ser "espalhafatoso e feliz" é um dos segredos de seu sucesso, assim como sua persistência. Ele parece orgulhoso ao contar que não desistiu da carreira mesmo depois de Daniel Filho e Roberto Talma terem lhe negado uma chance na TV, décadas atrás. Motivo alegado para a porta na cara de ambos os ex-medalhões da emissora, segundo Cunha: excesso de espalhafato.

Não foi a única vez. "Teve uma diretora da TV Educativa que disse para mim: ‘Se você não fosse tão gay assumido, eu te daria um programa’". Paraense de Belém, Milton diz que foi uma "criança viada" e, por isso, sofreu muito durante a infância. "Meus pais não me amavam do jeito que eu era, não me amavam", enfatiza o comentarista, que se mudou "pobrinho, pobrinho" para o Rio, aos 19 anos. Veio, viu e venceu.

Hoje em dia é ovacionado quando aparece no Sambódromo carioca e diz, rindo, que não consegue nem fazer compras com tranquilidade, tal a quantidade de gente pedindo uma foto ao seu lado. "Esse é o inferno que eu sempre quis", admite o comentarista (ou melhor dizer pós-doutor?), uma das estrelas, ainda que involuntárias, da série "Vale o Escrito", sobre os bastidores do jogo do bicho no Rio. Leia a seguir a entrevista:

Você trabalha há mais de uma década como comentarista de Carnaval da Globo e ganha cada vez mais espaço na TV. O que você tem que os outros não têm? Olha, acho que sou único. Único no sentido de que desde que era criança eu falava desse jeito. Sempre fui assim, nunca mudei. Todo mundo hoje imita minha voz, minhas palavras, minhas expressões, os termos que uso, mas sei que para mim deu certo por isso. Eu sou natural.

Os imitadores te incomodam? Não! Que bom que me imitam. Que bom, eu fico tão feliz dos grandes comediantes me imitarem. Fácil é imitar a minha voz, impossível é ter meu glamour. O figurino deles é de quinta, o paetê deles é da Saara [área de comércio popular no Rio de Janeiro]. Imagina, meu amor, eu sou cristal austríaco, eles que não venham com a graça deles, não. Falta muito poder para ter o meu élan.

Viralizou o seu depoimento no documentário "Vale o Escrito", sobre os chefões do jogo do bicho no Rio e a ligação dos contraventores com o carnaval. Você, que começou como carnavalesco em 1994, na Beija-Flor, conta histórias de bastidores e diz que o bicheiro Maninho, do Salgueiro, era "belíssimo e perigosíssimo". Você avisou a alguém da contravenção que falaria publicamente sobre isso? Eu pedi autorização para o Anísio [Abraão David, bicheiro e presidente de honra da Beija-Flor] e para o Guimarães [Capitão Guimarães, bicheiro e patrono da Vila Isabel] para fazer. Eles me deram. Eu fui lá e falei o que vi. Falei as coisas que são do meu coração. Não inventei nada, nunca vi ninguém matando ninguém, vi notícias de jornal, mas não sou nem jornalista, nem policial, nem advogado. Então, fui lá há três anos e meio falar isso tudo, mas não falei nenhuma mentira.

E gostou da série? Então, até hoje eu não vi, sabe? Eu não tenho coragem de ver, não. E todo mundo já me ligou dizendo que eu tô ótimo. A Xuxa, o Bial, a Leilane Neubarth, a Maria Rita, todo mundo me diz: 'Você tá maravilhoso'. Mas assistir, eu não assisto não. Não quero nem ver, não passo nem perto. Quando começa o comercial eu tiro, apago. Não quero me ver, não, amada. Fico feliz com o sucesso de "Vale o Escrito" mas quem tem cu tem medo.

Por quê? Sei lá. Foi engraçado, foi ótimo, tchau. Já nem sou mais aquele de três anos e meio atrás.

Se arrepende de ter gravado? Não, faria tudo de novo.

Tem algum arrependimento na vida? Eu me arrependo de ter feito pouca suruba, eu devia ter tirado a minha roupa mais fácil (risos). Olha, amada. Não me arrependo de nada. Não herdei nada, cavei cada espaço, então, irmã, erros foram cometidos mas em nome de melhorar, de ser livre, por um mundo mais democrático. Na minha trajetória na TV o meu arrependimento é não ter entrado ainda nas novelas para fazer um personagem divinérrimo, tipo um mordomo chiquérrimo da Fernanda Montenegro.

Você já disse que teve uma infância difícil porque era uma 'criança viada' e seus pais não te aceitavam. Eles não me amavam do jeito que eu era, não me amavam. E diziam: 'Se você for de outro jeito, se você for homem, se você falar como homem, a gente vai te amar'. Então eu não tinha esse lugar do amor.

Você agora é uma referência LGBTQIA+. Que conselhos daria para que outras crianças não passem pelo que você passou? Conselho para as crianças viadas: continuem, sejam o que são. Conselho para os adultos, pais, professores, diretores, padres, delegados. Compreendam que a liberdade individual, o espírito, o corpo das crianças pertence a elas. Elas vão construir suas histórias. Elas não podem ser moldes, modelos que vocês puxam para lá e puxam para cá, para fazer o que vocês querem. A criança não está aqui para cumprir tabela de adulto. A criança está aqui para ser feliz, para brincar, para ter o sonho, para empreender o seu próprio destino. E o apoio tem que vir dos adultos. Então chega de espancamento, chega de terror moralista. Chega de querer fazer das crianças esse projeto de adulto que essa gente quer.

Como você lida com a fama? Amor, eu não me sinto melhor que ninguém, eu não me sinto, sabe, descolado da realidade, não. É a fuzarca, né? Quando eu estou no hortifruti de Copacabana, é gritaria, foto. E eu lá, dizendo: 'Me larga, me deixa comprar meus tomates, apertar os pepinos'. E aí é gritaria, e tchau. Motorista de ônibus também grita. A verdade é que esse é o inferno que eu quis, cheguei aonde eu queria chegar, sabe, amada?

O começo da sua carreira não foi fácil. Eu fiz 'Sem Censura' com a Leda Nagle, fiz transmissão do Boi de Parintins pela Bandeirantes por cinco anos, mas o comecinho mesmo foi duro. Eu tinha pedido chance para o Daniel Filho, para o Roberto Talma e não rolava, não rolava.

Por quê? Porque eu era muito jovem, muito espalhafatoso, e tal. Mas aí Miguel Athayde [diretor da Globo] e Boninho, essas modernidades, me puxaram para dentro, e acho que eu só entrei quando dava para entrar. Quando o politicamente correto, quando o paradigma quebrou, eu entrei. Porque aí dava pra vir o black power, o gay power, as mulheres, então eu acho que eu sou fruto do meu tempo, e eu soube esperar, eu segurei.

Alguém mais te rejeitou por causa do seu jeito espalhafatoso, característica hoje considerada um de seus trunfos? Teve uma diretora da TV educativa que disse para mim assim: 'Se você não fosse tão gay assumido, eu te daria um programa, tantos galãs são gays e escondem....".

E o que você respondeu? Eu disse: 'Não, querida. Eu enfrentei pai e mãe, vim passar fome no Rio porque eu não quero fazer o jogo hipócrita de vocês, eu quero entrar como eu quiser, falar como bem entender'. Isso sempre foi inegociável.

Como você se vê daqui a dez anos? Daqui a dez anos eu não queria mais contar dinheiro para pagar boleto, hahaha. Eu queria ter o suficiente, então ainda estou no meio do caminho, construindo, juntando. Já comprei o apartamento, já comprei o carro, mas agora o fundo de garantia pelo tempo de serviço de um artista, de um autônomo, é difícil, né? Como é que eu me vejo? Rica, de roupão, sentada num divã. Rica! Eu quero ser ricaaaa!

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