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Cinema e Séries
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Vale o Escrito: Existe vida depois, diz vítima de atentado após desentendimento com bicheiro

Carlos Gustavo, o Grelha, chegou a perder movimento das pernas em ataque a tiros contra carro do ator Tarcísio Meira Filho; caso é lembrado na série sobre o jogo do bicho

Carlos Gustavo P. Moreira, o Grelha
Carlos Gustavo P. Moreira, o Grelha - Acervo Pessoal
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Rio de Janeiro e São Paulo

No final de outubro de 1986, um crime tomou as páginas policiais da imprensa carioca. O ator Tarcísio Meira Filho e mais dois amigos tinham sido alvos de um atentado —e um dos personagens mais famosos da cidade, o bicheiro Waldemir Paes Garcia, conhecido como Maninho, estava no meio da história.

O crime aconteceu depois de um desentendimento entre o trio de amigos e Maninho, num restaurante do Leme, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Segundo os relatos, o contraventor e amigos perseguiram o carro do ator e três tiros foram disparados.

Uma das balas atingiu a coluna de um dos passageiros, o então estudante de engenharia Carlos Gustavo P. Moreira, o Grelha. Ele chegou a perder os movimentos da cintura para baixo.

Um segurança do bicheiro chegou a assumir a autoria dos disparos. Mas o contraventor, que morreu assassinado em 2004, nunca foi responsabilizado criminalmente pelo caso.

O crime foi relembrado recentemente na série documental Vale o Escrito, um dos maiores sucessos recentes da Globoplay. Mas Moreira, que hoje tem 60 anos e estava hospitalizado à época da produção do programa, não conseguiu dar uma entrevista sobre o caso a tempo de ser incluído. Neste depoimento à Folha, ele conta o que viveu naquela noite —e o que mudou em sua vida depois dela.

Tinha sido um domingo como qualquer outro. Até que, naquela noite, resolvemos tomar uma saideira em um restaurante no Leme, na Zona Sul do Rio de Janeiro.

Dali a algumas horas, eu seria vítima de um atentado.

Era 27 de outubro de 1986. Eu tinha 22 anos e não sabia quem era Waldemir Paes Garcia —embora, duas semanas antes, tivesse saído uma reportagem sobre ele no Jornal do Brasil.

Ele estava em uma mesa perto de nós com umas meninas e mais duas pessoas. Olhamos, fizemos algum comentário entre nós e não houve mais nada além disso —nenhum gracejo, nenhum sinal, nenhuma mensagem, apenas olhares.

Ao centro, o contraventor Waldomiro Garcia, conhecido como Maninho, acompanhado dos bicheiros Anizio Abrahão David (à esq.) e Miro Garcia (à dir.)
Ao centro, o contraventor Waldomiro Garcia, conhecido como Maninho, acompanhado dos bicheiros Anizio Abrahão David (à esq.) e Miro Garcia (à dir.) - Luiz Carlos David - 8.fev.89/Folhapress

Já era tarde quando saímos. Tarcísio sentou no banco do motorista, eu no do carona e nosso amigo no de trás. Reparei que Waldemir estava saindo do restaurante. Olhei para uma das meninas, mas fiz comentários para meus amigos apenas —ela era, depois soube, a Sabrina [mulher de Maninho].

"Tá olhando muito! Vai lá e fala com elas!", disse Waldemir irritado, se aproximando do vidro.

Apenas balancei a cabeça, em sentido negativo. Ele deu um chute no vidro com a sola do pé. Outra pessoa que estava com ele quebrou o retrovisor também com um chute.

Arrancamos com o carro. Quando estávamos no túnel ali perto, vi o carro com Waldemir ao volante, que nos fechou pelo lado direito, enquanto um outro veículo nos fechava pela esquerda.

Olhei para Waldemir, balancei a cabeça negativamente mais uma vez e vi que outro carro surgia entre nós dois.

Senti uma sensação estranha. Como se minhas pernas tivessem batido uma na outra e eu tivesse perdido o comando delas. Era como se meus membros inferiores não existissem.

Não me lembro de ouvir o som dos tiros. Mas tinha sido atingido por um dos três disparos feitos contra nosso carro. Depois, entendi a sensação: uma bala tinha passado raspando por meu braço e me atingido na coluna, raspando uma das minhas vértebras.

Cirurgia de emergência. Quatro dias no Hospital Municipal Miguel Couto.

Tentava mexer o pé, tentava mexer a perna, a cara do médico não era boa. Nenhuma mobilidade do lugar do tiro para baixo. Paraplégico.

Sentia muita dor, muita angústia, muita ansiedade. Um médico veio até meu leito um dia, com uma mensagem de esperança, quando eu não conseguia sentir esperança: havia chances de eu um dia andar outra vez. Apenas chances.

Comecei em seguida um longo tratamento de reabilitação. E ali minha cabeça começou a mudar.

No centro de reabilitação, houve algo mágico: de repente, passei a ter a sensação de que quem andava é que era diferente, não eu.

Depois de ter minha vida salva por um hospital público, pude fazer uma fisioterapia de altíssima qualidade. Passados oito meses, consegui sair da cadeira de rodas. Com muletas, como ando até hoje, com talvez 60% da mobilidade recuperada.

Lembro ainda os primeiros passinhos.

Fiz também tratamento em Cuba e, por essa experiência, acho que hoje as pessoas não têm critérios quando criticam aquele pobre país. Fui maravilhosamente bem atendido, não gastei um tostão.

Minha visão de mundo começou a ficar diferente. Hoje, sinto a obrigação de contar minha história, porque minha experiência vai além do atentado que sofri.

Existe vida depois de algo assim. Impedido de jogar futebol ou vôlei, lembro ainda quando descobri a natação: percebi que eu flutuava, tive uma sensação de uma enorme liberdade, como se estivesse resgatando algo em mim.

Em termos de sensibilidade, me sinto até melhor do que antes. Vi que há pessoas dispostas a cumprir um papel na vida dos outros e que podemos construir uma vida de maior empatia com nossos semelhantes —e até conquistar uma maior felicidade interior.

A música sempre me ajudou muito. Wagner, Mozart, Milton Nascimento e outros. Há um verso de Caetano que diz "quem é ateu e viu milagres como eu...." —assimilei muito essa ideia.

Existe muita vida após a deficiência. No início é o caos, mas, depois, vi minha capacidade de entender os outros ser ampliada. Podemos construir uma existência até mais rica do que antes. E quero contar esta história para quem está no começo dessa angústia.

Em depoimento a Maurício Meireles

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