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Celebridades
Descrição de chapéu

Xuxa arrisca sua coroa com documentário condescendente

Rainha dos baixinhos perde prestígio ao evitar se responsabilizar por erros do passado

Em foto colorida, mulher de vestido preto e bota pretas posa em estúdio colorido
Xuxa Meneghel vem recebendo viradas de olhos e muitas críticas por causa do documentário - Divulgação/Globo
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São Paulo

Anitta, Taylor Swift, Beyoncé, Lady Gaga, Elton John e, agora, Xuxa. A lista de celebridades que lançaram documentários sobre si mesmas em vida é extensa e cresce nos anos recentes. Nas mãos de roteiristas habilidosos, o formato tornou-se uma saborosa ferramenta de marketing, mas também um perigoso atalho para o cancelamento nas redes –linha tênue na qual a reputação da rainha dos baixinhos vem se equilibrando desde o lançamento do primeiro episódio de sua série "Xuxa, O Documentário".

Do primeiro ao quinto e último episódio sobre a trajetória da apresentadora, este último disponibilizado nesta quinta-feira (10) no Globoplay, a série não foge a essa que parece ser a nova regra para as produções do gênero: produtos não-ficcionais que permitem humanizar biografados célebres enquanto dão voz a suas próprias versões sobre controvérsias que os incomodam —e o fazem em narrativas meticulosamente editadas, mas vendidas para o público como a realidade crua e factual.

Editar a realidade para criar uma ilusão de intimidade que permita a identificação do público com a figura na tela é o que influenciadores digitais têm feito com maestria na última década, explicam estudos da área. O sucesso desses influenciadores da vida real atende aos anseios de uma audiência de TV cansada de estrelas inatingíveis e celebridades impecáveis. Sua popularidade online talvez explique porque tantos famosos também resolveram aparecer de cara lavada falando sobre suas dores em documentários recentes.

Os problemas começam quando a audiência percebe que foi enganada: deu play no streaming esperando ver o artista famoso mostrar-se gente como a gente e viu-se rapidamente guiada por uma versão muito particular dos fatos, que tenta convencer que até os erros do retratado são, no fundo, um acerto. A série de Xuxa é essa versão em audiovisual da anedota do candidato que responde na entrevista de emprego que seu maior defeito é o perfeccionismo. Ele parece reconhecer uma falha sua, mas, lá no fundo, não deixa de sinalizar virtude. Que empregador não quer um candidato humilde e que, ainda por cima, busca fazer tudo com perfeição?

O retrato documental da trajetória da apresentadora infantil de maior sucesso do país tem, claro, inegável valor histórico. Xuxa é carismática, sensata, talentosa, linda e determinada. É compreensível que a Globo queira recuperar sua história para honrar e reciclar seu sucesso estrondoso e apresentá-la para as novas gerações.

Mas esse novo público não gosta de heróis intocáveis e pretensamente perfeitos. Isso fica claro através de um efeito da produção da Globoplay certamente inesperado para seus criadores: em redes como o Twitter, Xuxa vem recebendo viradas de olhos e muitas críticas por se isentar de qualquer responsabilidade por escolhas e erros em situações diversas retratadas na série.

A percepção online sobre o documentário, sutil, mas clara, é que tudo é sempre sobre Xuxa, mas nada nunca é sua responsabilidade.

Xuxa partiu o coração de Ayrton Senna, ao priorizar a carreira e terminar o relacionamento? A culpa é de Marlene Mattos, diz a série, que a fez escolher entre os dois. Ele estava em um relacionamento com Adriane Galisteu quando morreu? Pode até ser, mas o amor de sua vida era Xuxa. A rainha dos baixinhos perdeu a entrevista no maior programa matinal dos EUA, que poderia ter impulsionado sua carreira por lá? É porque estava doente e porque Marlene teria sabotado uma carreira internacional sobre a qual não teria o mesmo controle.

Todas paquitas eram loiras e brancas, num país de maioria preta e parda? Segundo a série, a responsável é Marlene, que escolhia as meninas e as obrigava a tingir as madeixas. Nenhuma palavra é proferida sobre o racismo estrutural do qual Xuxa, com sua beleza nórdica, amplamente se beneficiou no início da carreira. Uma única paquita negra, que participou da versão americana de seu programa, é pinçada entre todas as demais para um depoimento emocionado, no segundo episódio, sobre a importância da diversidade. No Brasil não houve nenhuma, segundo Xuxa, porque "não era a imagem que a Marlene queria".

A repercussão do documentário volta-se contra Xuxa de tamanha maneira que o retrato da relação inegavelmente abusiva com Marlene Mattos tem feito com que parte do público tenha passado a, surpreendentemente, defender a ex-diretora e a reabilitar sua reputação.

Xuxa era até agora unanimidade na bolha progressista virtual, graças à memória afetiva do público e a suas posições públicas também progressistas. Mas essa bolha parece sempre propensa a simpatizar com o elo mais frágil. Por isso, quando a culpa de tudo é repetidamente colocada na conta de Marlene, é previsível que a solidariedade das redes migrem para aquela que aparenta estar sendo pública e reiteradamente vilanizada. A versão de Xuxa, ainda que genuína, perde credibilidade. Em um documentário, o público não compra histórias de mocinhos e vilões.

A apresentadora também não ganha muitos simpatizantes entre a geração woke online, que detesta privilegiados como nepobabies, quando executivos da Globo falam sem pudores na série que alguns dos primeiros convites profissionais à apresentadora foram feitos simplesmente porque ela era deslumbrante. Também não ganha muitos likes da audiência, que sabe o quanto é difícil que alguém talentoso seja reconhecido, ao admitir com espanto genuíno, ela própria, que diversas portas se abriram sem que ela sequer batesse nelas —caso dos convites para atuar no cinema ou gravar álbuns sem que tivesse qualquer experiência ou talento notório nessas áreas.

Se a ideia era se conectar com a geração jovem e mais conectada, faltou coragem para reconhecer erros e privilégios e abordar questões delicadas, mas onipresentes nos debates nas redes hoje. É importante que a série fale sobre questões que vitimizaram Xuxa, como machismo, abuso moral e violência sexual. Mas a produção perde seu caráter realmente documental quando ignora os temas em que a apresentadora possa ter tido seu próprio papel como algoz. O racismo na escolha das paquitas é um deles. Contextualizá-lo no passado do país pode evitar uma análise anacrônica, mas não a exime de nomeá-lo pelo que de fato é e de discuti-lo hoje, como a série opta por não fazer.

Paradoxalmente, não ajuda a apresentadora que todas as controvérsias de sua vida sejam abordadas sob uma luz que a favoreça. É nos raros momentos em que reconhece fraquezas reais e permite ser realmente vulnerável que o público passa a gostar mais de Xuxa. As críticas provam que, para continuar sendo rainha, é preciso também saber descer do trono.

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