Drag Race Brasil tenta transformar fenômeno global com 'axé' e jeitinho brasileiro
Versão do reality show de drag queens apresentado por RuPaul estreia nesta quarta-feira (30)
"Gatas, liguem seus motores e que vença a melhor drag queen!" Chegou a hora de as brasileiras mostrarem que têm carisma, originalidade, coragem e talento. Nesta quarta-feira (30), estreia o reality show Drag Race Brasil, a aguardada versão nacional do RuPaul's Drag Race.
Para quem não conhece, trata-se de uma competição em que drag queens passam por provas que testam suas habilidades para produzir looks icônicos, mostrar presença na passarela e em desafios que envolvem atuação e dança, entre outros. A cada semana, as duas que impressionaram menos os jurados, correm o risco de ser eliminadas e se enfrentam dublando uma música no palco.
A versão original, que já tem sua 16ª temporada confirmada, acumula 26 prêmios Emmy. Pode-se dizer que, ao longo dos anos, o programa furou a bolha e se tornou parte da cultura pop. Além de dar visibilidade à arte drag, gerando fenômenos como Pabllo Vittar e Gloria Groove, situações do programa e frases de efeito do apresentador RuPaul Charles, a Mama Ru, estão encravadas no imaginário (e no vocabulário) LGBTQIA+ em todo o mundo.
Para a tarefa de comandar a versão brasileira, a produtora americana World of Wonder escalou a gaúcha Grag Queen. Ela foi a vencedora de outro reality show da empresa, o Queen of the Universe, cujo foco era escolher a melhor drag cantora do mundo, a "rainha do universo".
Grag diz que, apesar de o novo programa seguir a cartilha do original, teve liberdade para fazer algumas coisas do seu jeito e inserir seus bordões, como "what's up, lindas?" (como estão, lindas?) sempre que entra na sala de trabalho para conversar com as 12 participantes. Ironicamente em inglês, a frase batizou a primeira turnê dela —RuPaul fala apenas "hellow, hellow, hellow" (olá, olá, olá) nesses momento.
Ela destaca ainda o fato de ter conseguido mudar para "axé" o "amém" que a apresentadora do original pede ao final dos episódios, uma vez que perde-se o trocadilho que ela faz em inglês ("a man", que tem pronúncia parecida, seria como pedir que lhe trouxessem "um homem"). "Pode ter certeza de que vocês vão ver muito originalidade, afinal tudo em que o Brasil está no meio a gente sempre dá um jeito de se destacar", conta ao F5.
A brasileira, que se declara "obcecada" pela franquia, diz que assiste ao reality "desde que eu me entendo por viado". "Eu sinto que eu estava sendo preparada para ocupar essa cadeira", afirma. "Agora estou em busca de saber qual é a reação da RuPaul, para ver se eu fiz certinho. Não sei se ela já viu algo, se deixou para ver na hora e não gostar, se deu mal (risos)."
Por já ter participado de outra competição parecida, Grag Queen acha que conseguiu ser totalmente empática com as competidoras. "Sei muito bem o que é estar na pressão", compara. "Mas principalmente sei aonde a nossa mente pode nos levar simplesmente por ser um menino gay com todos os nossos recortes de opressão, o que é ser brasileira com todo esses desgovernos que houveram, com todas as precariedades até de educação que a gente vive... Isso se reflete a nossa saúde mental enquanto artista LGBTQ e que faz drag."
MODA, HUMOR E POLÊMICAS
Para decidir quem sai e quem continua no reality, Grag terá a ajuda de um júri fixo formado pelo estilista Dudu Bertholini e pela humorista Bruna Braga. Além deles, a cada episódio há um jurado convidado, como Bruna Linzmeyer, Hugo Gloss, Kéfera, Maria Casadevall e Mauro Sousa. Na estreia, quem dá seus pitacos é Gretchen.
Para Bertholini, que acompanha a cena drag desde que começou a frequentar a noite paulistana no final dos anos 1990, a arte drag está intrinsecamente relacionada à moda. "Sempre olhei para a moda por um viés crítico, entendendo como ela pode transformar o mundo numa experiência mais livre, autêntica e individual", avalia. "E quem faz isso melhor do que as drags, que maximiza as nossas potências e que transformam aquilo que a sociedade aponta como defeito e transforma no seu melhor efeito?"
O estilista afirma que, no grupo de competidoras, há várias que têm talento para a área, o que o público poderá conferir nos desafios de design do programa. "Você percebe como elas são capazes de criar coisas lindas diante das situações mais adversas", adianta. "Várias delas são fashion queens natas, daquelas que se comunicam mesmo através da moda, assim como temos grandes designers no elenco, pessoas que tenho certeza que podemos esperar ver nas passarelas e nos drag carpets [tapetes vermelhos drag] do mundo."
Bruna Braga, que ficou responsável por analisar o humor do grupo, conta que, mesmo as participantes que se destacam com outras habilidades, são muito engraçadas. "Vou te dizer que, no quesito comédia, todas todas entregam", afirma. "Óbvio que tem as que estão ali mais presentes, mas comédia tem em todas, para todas e de todos os gostinhos."
A humorista avalia que o humor brasileiro é muito particular, mas diz que não houve uma preocupação específica em adaptar piadas para que o público estrangeiro as entenda —o programa vai ser disponibilizado em toda a América Latina pela Paramount+ e no resto do mundo pelo serviço de streaming WOW.
"A gente também teve dificuldade para entender piada de outros países, então eles que tenham também e venham buscar", defende. "O português é um idioma lindo, que tem palavras únicas e que não se traduzem, mas acho que a emoção da comédia brasileira se traduz no olhar, no corpo. Então tenho certeza que os outros países vão entender, talvez não 100%, não literalmente, mas o suficiente para dar risada e olhar para as gatas e dizer que temos comédia, sim."
Antes da estreia, a jurada foi alvo de críticas nas redes sociais pelo fato de não ser tão identificada com a cena drag. "Olha, o formato primogênito é exatamente assim, não tem drags na bancada", defende-se. "Esse formato não é uma inovação, uma ideia do Brasil. Então, quando fui questionada sobre não ser drag e estar ali, questionei essa pessoa que me questionou: 'Se você é tão fã de Drag Race, você ainda não entendeu o formato?"
Outra polêmica que tomou conta da internet antes mesmo de o primeiro episódio ser liberado foi a suposta presença de uma bolsonarista no grupo de participantes. A apontada foi Diva More, que precisou divulgar publicamente que não é eleitora do ex-presidente Jair Bolsonaro.
"Sou contra tudo o que ele apoia, ele é tudo o que abomino em uma pessoa, então foi um grande equívoco que acabou tomando proporções gigantes", lamenta Diva. "Fui uma das que lutou com unhas e garras para tirar ele do poder, fui às ruas pedir o impeachment dele, fiz o meu trabalho como cidadão da comunidade LGBT."
Diva conta que começou a se montar há quase sete anos, para uma festa de Dia das Bruxas. "Acho que 50% das drags brasileiras começam no Carnaval e uns 30% no Halloween", brinca. "Era para ser uma única vez, tipo nascer e morrer numa noite, mas me encantei pela arte."
Os motivos que levaram as participantes a se tornarem drags são os mais diversos. "Eu me encontrava em estado de depressão, sem saber que caminho seguir", conta Rubi Ocean, que é estilista. "Minhas criações eram muito lúdicas e muito loucas para esse mundo. Foi quando conheci arte drag e consegui externalizar tudo aquilo que eu sinto e colocar as minhas ideias, a minha criatividade e a minha técnica. Então, a minha drag virou a vitrine do meu trabalho."
Rubi vem de Brasília, onde diz haver algumas especificidades por causa do contexto da cidade. "Sinto que as drags e os artistas de Brasília têm uma consciência politizada que nos difere", comenta. "Esse caldo cultural se reflete muito e faz a gente se questionar o tempo todo quem somos, porque fazemos isso, quais são os direitos que merecemos fazendo e exercendo da nossa ofício. É realmente tem um diferencial, e é isso que eu estou trazendo para a competição."
Já Tristan Soledade, que faz parte da cena drag de Belém do Pará, também acredita ter aspectos únicos. "Sou a únicaa big girl [garota grande, plus size], a única barbada e a única da região norte... São muitas carteiradas (risos)!", brinca. Ela diz que seu trabalho é voltado para a desconstrução dos padrões visuais.
"Muita gente acha que a arte drag é sobre ilusão feminina", lembra. "É interessante a gente perceber que nosso trabalho não precisa ser atrelado a isso. Não é só por close, a gente não tem como produzir arte drag sem pensar na nossa territorialidade. Eu estou muito feliz com tudo que eu carrego e que vou poder mostrar na competição."
A maioria das participantes diz que a ficha de fazer parte da primeira edição da versão brasileira de um programa que acompanhavam ainda está caindo. Miranda Lebrão, do Rio de Janeiro, considera a versão nacional um avanço para quem trabalha com isso no país. "A gente está construindo um caminho que é nosso, um jeito de exaltar o meio transformista brasileiro", comemora.
Ela admite, porém, que assistir de casa é bem mais tranquilo que estar ali vivendo na pele todas as situações propostas pela dinâmica do programa. "Você não sabe o que é se maquiar correndo contra o tempo", brinca. "Juro para você, eu retiro em nome do transformismo todo o shade [indireta] que já lancei. Nunca mais vou xoxar [debochar] a maquiagem de nenhuma drag."
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