'Tudo É Rio' segue a mesma estrutura de um romance hot, e por isso faz tanto sucesso
Lógica da reparação com cenas quentes é a combinação perfeita para leitoras mulheres
Com alguns anos de atraso, comecei a ver "Bridgerton", uma charmosa série de TV que se passa na corte inglesa do século XIX. É uma adaptação da série de romances de mesmo nome, da autora americana Julia Quinn. A história começa quando Daphne Bridgerton, uma moça virgem, doce, pura, porém digna, e o Duque de Hastings, um libertino, arrogante e emocionalmente indisponível, porém muito gostoso, desenvolvem uma antipatia que vira tesão.
Infelizmente, a bela bunda do homem aparece por muito menos tempo que a eterna DR dos dois protagonistas. Isso me lembrou o tempo todo do best-seller brasileiro Tudo é rio, de Carla Madeira. Nessa semana da Festa Literária de Paraty, fica aqui meu comentário sobre duas histórias aparentemente tão diferentes, mas no fundo muito iguais.
Em "Bridgerton", Daphne cresceu em uma família cheia de irmãos que, apesar das picuinhas fraternas, se amam. Sua mãe e seu falecido pai eram apaixonados um pelo outro e criaram os filhos e filhas com muito amor e afeto. Hastings, ao contrário, perdeu a mãe ao nascer e foi rejeitado pelo pai porque tinha problemas de fala.
Ela quer reproduzir a família amorosa, ele, endurecido, não quer formar família nenhuma. Um não vai com a cara do outro, mas fazem um acordo mutuamente benéfico em que ele finge cortejá-la.
Obviamente eles se apaixonam, se casam e rola muita putaria. Mas infelizmente não tanto quanto as espectadoras da série gostariam, tendo em vista que o elenco é primoroso e as cenas são feitas para objetificar o ator e não a atriz. Queremos mais!
Só que nem todo sexo com amor do mundo amolece Hastings —se sua rola está sempre muito perto de Daphne, seu coração segue distante. E assim eles seguem, crise conjugal após crise conjugal, ela sempre mantendo a dignidade e ele aos poucos se abrindo.
Em "Tudo é Rio" uma moça criada com muito amor chamada Dalva se apaixona por Venâncio, um rapaz criado sem afeto e que fica doido por ela. Ele é claramente muito violento e até agride um amigo da moça, mas ainda assim ela acha que é uma boa ideia casar com ele. Eles têm um filho e ao ver o neném mamar a mulher que ele ama, ele de repente decide jogar o bebê na parede (tudo normal e dentro do tom).
Depois de perder o filho, a virginal e doce Dalva (mesmo não sendo mais virgem) entra numa longa vingança passivo-agressiva, em que os dois dividem a mesma casa, mas ela, muito digna, não fala com ele, por anos. E, no meio disso tudo, rola muita putaria, mas envolvendo uma outra personagem, a prostituta Lucy, porque afinal não dava para colocar a santa e a puta no mesmo corpo, né? Fato é que o sexo está lá, siririca quem quer.
O tempo passa, o tempo voa, e Venâncio vai ficando cada vez mais arrependido, ele só queria sua vida com Dalva de volta! Mas só que, como não bastasse uma mulher ter se apaixonado por um sujeito violentíssimo, se apaixonou também a outra, logo ela, a insaciável meretriz Lucy, que nem foder queria mais depois de ter sentido aquele indisponível Venâncio dentro de si.
Bom gente, a questão é que no final a família tradicional brasileira impera, o amor da virgem afetuosa com o bronco violento volta a ser o que era antes, temos pai, mães e filhos em pleno acordo, todo mundo acaba feliz, o perdão vence! Ah, mas pelo menos ela se vingou?
Que vingança é essa em que a casa do homem que arremessou seu neném tá sempre limpa e bem cuidada?
Essa lógica da reparação em que uma mulher vê um homem todo estropiado e insiste em um relacionamento bosta —não importa de quantas formas ele mostre que é violento, abusivo, mentiroso e, depois de tantas voltas, ele de fato "melhora" e eles são felizes para sempre— permeia não só "Bridgerton", como os romances eróticos de forma geral. E também permeia "Tudo É Rio".
Os romances eróticos são o gênero de literatura mais lido por mulheres no Brasil e talvez no mundo. Ouso dizer que existe um caráter compensatório nesse tipo de leitura. Pelo menos ali, na ficção, as tentativas de melhorar o imelhorável dão certo, já que os dados da vida real mostram o contrário. E, claro, eles trazem o reforço do dispositivo de gênero: mulheres são feitas para amar, cuidar e perdoar e é preferível que sejam virgens.
Mas algo que segue me intrigando é que os eróticos sejam vistos como bregas, cafonas e baixa literatura pelo público cult frequentador da Flip, enquanto "Tudo É Rio" seja visto como literatura ousada e quebradora de tabus —ainda que não quebre absolutamente nenhum, apenas reforce os mesmos de sempre.
De resto, se é pra sofrer por homem indisponível, que ele seja tão gostoso quanto o Duque de Hastings, que é escroto, sim, mas não é abusivo e violento. Senão, circulando.
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