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Zapping - Cristina Padiglione
Descrição de chapéu machismo

Futebol feminino escancara preconceitos em documentário

Deixa Ela (GNT e SporTV) expõe o ônus de ser mulher em um ambiente que os homens julgam ser seu

Juíza em campo exibe cartao vemelho para treinador
A árbitra Edina Alves Batista dá cartão vermelho a Luís Castro, técnico do Botafogo, em duelo contra o Flamengo no Maracanã, em abril de 2023: cena do documentário Deixa Ela, em cartaz no GNT, Sportv e Globoplay - Reprodução
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São Paulo

Não há atividade mais ilustrativa para demonstrar as discrepâncias entre homem e mulher do que o futebol, e a Copa do Mundo feminina vem a calhar para a exibição de Deixa Ela, documentário criado por Ana Abreu, que também assina a direção, ao lado de Fernanda Frazão. Composta por cinco episódios, a série está em exibição pelos canais GNT e SporTV, com opção sob demanda no GloboPlay, onde já há três capítulos disponíveis.

Não se tem notícia, aliás, de uma produção veiculada ao mesmo tempo e com tanta utilidade por duas emissoras de públicos tão distintos, uma majoritariamente feminina, e outra, masculina. A ideia é essa mesmo: furar bolhas e falar a um universo que não faz ideia dos preconceitos estruturalmente sofridos por uma mulher num ambiente de homens, às vezes moleques eternos a tropeçar em cacoetes machistas e misóginos.

"Deixa ela trabalhar", "deixa ela torcer", "deixa ela apitar", "deixa ela jogar", reza a vinheta de abertura.

Na véspera de ver a seleção feminina enfrentar a França na Austrália, jogo marcado para a manhã deste sábado (29), Ana e Fernanda conversaram com a coluna sobre a iniciativa da produção, que começou em 2019 e nasceu sob a proposta de mostrar a presença feminina no esporte de modo geral, então com destino à exibição durante as Olimpíadas de Tóquio.

Vem pandemia, vai pandemia, Jogos adiados e tal, a proposta foi se concentrando no futebol, então com o propósito de ser exibida durante a Copa do Qatar, mas finalmente ficou para a Copa da Oceania.

"Não poderia haver momento melhor", comemora Ana, que tem compartilhado os teasers de cada episódio com o marido, encarregado de levar as dicas ao seu grupo de boleiros.

"Um amigo me escreveu dizendo como ele se sentiu até constrangido, por ver como é difícil perceber os privilégios e fazer parte daquilo", diz Fernanda. "É um privilégio que está posto e está em manutenção", completa. "Porque é bom para eles", intervém Ana.

"Quando você para e vê o que estão cantando no estádio, dá uma certa vergonha", fala Ana, citando o episódio sobre as torcidas presenciais. "Muito mais que audiência, o que nos interessa é o impacto que isso causa: se a gente conseguir alcançar homens que vão mudar sua postura no estádio, [o doc] já valeu", afirma.

Dos episódios disponíveis, o primeiro focaliza o trabalho das mulheres na cobertura do futebol, com fortes relatos de Ana Thais, comentarista da Globo, e Bianca Santos, do canal Desimpedidos. O segundo capítulo mira as árbitras em campo, com várias cenas de agressão física que expõem um certo primitivismo de homem das cavernas e consequências impensáveis para a vida pessoal das vítimas. O terceiro, exibido esta semana e já disponível no streaming, se encarrega das torcedoras que insistem em frequentar estádios.

Ainda estão para irem ao ar os episódios sobre as treinadoras de futebol --com Pia Sundhage, técnica da seleção brasileira, e Rosana, do RedBull Bragantino, e, por último, um sobre as atletas da modalidade, com Cris Roseira, do Santos, e Letícia, goleira do Corinthians, também na seleção.

Ana e Fernanda não ignoram os avanços conquistados em campo e fora dele, mas sabem que há muito a fazer. A permanente necessidade de corrigir injustiças cria acontecimentos recorrentes que as levaram a atualizar a produção até a última hora, como mostram as menções aos protestos pelos casos de Robinho, condenado por estupro na Itália --mas passeando livremente no Brasil--, e Cuca.

Também condenado por estupro fora do país, na Suíça, Cuca seguiu trabalhando como técnico por anos, até receber os protestos da torcida corintiana, recentemente, ao ser contratado pelo clube conhecido pelas premissas da democracia. O doc resgata um mea culpa de André Rizek, do SporTV, pela omissão dos homens diante do caso. "É quase uma convocação para se pensar no assunto", avalia Fernanda.

"Respeita as minas, Corinthians", corroborava a hashtag espalhada por redes sociais na ocasião, com endosso da comentarista Ana Thais, uma das vozes femininas mais ativas no futebol hoje, que conta à série como os seus protestos contra Robinho a atingiram. Com telefone divulgado nas redes sociais, ela se viu obrigada a trocar de número em um momento em que o pai estava hospitalizado. E não foi encontrada pelo hospital quando ele morreu. "Eu só soube da morte do meu pai depois que ele já estava enterrado", contou.

Ana Abreu e Fernanda reconhecem a força de Ana Thais, assim como da árbitra Édina Batista, que experimentou os efeitos devastadores de um erro em campo, de um modo como os juízes homens não sofrem.

As diretoras se comovem especialmente com a invisibilidade de agressões piores, sofridas por mulheres que passam longe dos holofotes, como Anny Albuquerque, árbitra do futebol de várzea de Salvador, que ficou nove meses sem memória e lamenta até hoje o impacto do apagão na vida do filho pequeno, que não se conformava de a mãe não saber quem ele era.

"Ela não é famosa, ela não é conhecida, não tem visibilidade, mora numa quebrada. E ninguém jamais ia saber desse caso. Ela não sabe até hoje quem foi o agressor. Foi negligenciada. Na várzea é que a panela esquenta, bem diferente da Edina, que está protegida por uma federação", observa Fernanda.

"Tem muito mais Anes do que Edinas", completa Ana Abreu. "A Ana Thais tem espaço na Globo, tem rede social, está metendo a boca no trombone, tem advogado e tal, é diferente dessa invisibilidade da Anne."

A equipe do doc é 90% feminina, e as duas admitem que não veem como um homem poderia abordar uma mulher para falar do assunto, por maior que seja a empatia dele. Falta a eles a vivência das agressões. As diretoras sabem que a presença feminina por trás das câmeras deixou as mulheres abordadas em cena à vontade para contar sobre suas experiências.

O grafismo é outro ponto que conspira a favor do bom resultado final, com cartelas estampadas na tela para sublinhar frases, conceitos e informações que elas gostariam de dar. As intervenções funcionam como um break para reter a atenção do público, diante de frases como "O porte físico de um homem é uma arma para a intimidação; O porte físico de uma mulher é um convite para a intimidação".

Em meio a repórteres mulheres que são apontadas pelas chefias masculinas como iscas fáceis para conseguir boas declarações de jogadores e técnicos do futebol dos homens, profissionais que são demandadas a cuidar da aparência, enquanto eles mal penteiam o cabelo, como diz Bianca Santos, do canal Desimpedidos, Deixa Ela joga holofotes sobre as distâncias que ainda segregam gêneros de modo tão nocivo para a saúde delas, mas procura manter acesa uma luz nem tão no fim do túnel.

"Teve um desejo de não terminar os episódios naquela bad, de tentar terminar com um pouco de respiro, de esperança. A gente não quer ser portadora do fim do mundo. No final, a gente sempre deixa um pouco da ideia de que ‘isso já mudou, mas cada um tem que fazer sua parte'", fala Ana.

Os episódios vão ao ar às 23h30 das terças-feiras, no GNT, e na madrugada de quarta para quinta, por volta de 1h, no SporTV, após o Troca de Passes, com outros horários alternativos.

Só falta passar na TV aberta: a Globo tem aí um bom produto em mãos para fazer valer um recado necessário para a redução de danos provocados pelo machismo não só em campo, mas fora dele também. O futebol opera transformações sociais preciosas no terreno racional das pessoas, porque mexe com o emocional delas.

Zapping - Cristina Padiglione

Cristina Padiglione é jornalista e escreve sobre televisão. Cobre a área desde 1991, quando a TV paga ainda engatinhava. Passou pelas Redações dos jornais Folha da Tarde (1992-1995), Jornal da Tarde (1995-1997), Folha (1997-1999) e O Estado de S. Paulo (2000-2016). Também assina o blog Telepadi (telepadi.folha.com.br).

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