Novelas que envelheceram mal: Globo amplia filtro de readequações
Revisionismo inclui cartelas de advertências e até cenas cortadas em exibições no canal Viva, Globo ou GloboPlay
Não é de hoje que o resgate de novelas antigas, e de produções nem tão antigas assim, por meio de exibições no canal Viva, no GloboPlay e até no Vale a Pena Ver de Novo, tem obrigado a Globo a passar um pente fino nas cenas originais, a fim de readequar valores equivocados e mal percebidos como tais até pouco tempo atrás.
Mas, mesmo que essa lista de questões em revisão tenha aumentado consideravelmente, recebendo com frequência alguma observação nova, há a preocupação em não se apagar a história e os passos dados até chegarmos aos conceitos que encontramos hoje, e que seguem em processo de compreensão sobre erros sociais estruturais. Só conhecendo os tropeços de ontem é possível corrigir os atos de hoje e amanhã.
Chamado como revisionismo histórico, conceito que atinge também obras do cinema, da música e da literatura, o processo esbarra em novos critérios à medida que avançam as discussões normalmente envolvendo racismo, homofobia e machismo, temas mais caros às reflexões que têm motivado cuidados extras com enredos de ficção e programas de humor.
Mas há também outras questões em jogo. A reprise de "Mulheres Apaixonadas", atualmente no Vale a Pena Ver de Novo, pela Globo, expõe um romance entre uma professora (Helena Ranaldi) e um aluno (Pedro Furtado) menor de idade como uma relação bacana. Apesar de toda a delicadeza adotada pelo autor Manoel Carlos para descrever aquela situação em 2003, certamente essa história ocorreria com algum estudante maior de idade se a novela fosse criada hoje.
A Globo tem adotado cartelas de observação quando considera imprescindível a exibição de algum trecho ou enredo que traga à cena conceitos ultrapassados para alertar sobre o contexto em que aquilo foi produzido e avisar sobre o que há de errado em determinada circunstância.
No caso do Vale a Pena Ver de Novo, muitas coisas podem ser cortadas sem prescindir de aviso, já que a versão exibida à tarde é mais compacta mesmo e o próprio conteúdo, criado originalmente para um horário de exibição diferente da faixa de reprises, motiva cortes há mais de 30 anos, quando começou a se discutir classificação indicativa como responsabilidade da TV, sob riscos de punição por meio de legislações criadas para tanto.
Mas na revisão de valores que decepam cenas em vez de admitir os erros do passado, como não parecer às novas gerações que o entendimento que se tem hoje sobre pedofilia e racismo sempre foi como é atualmente, sem os cacoetes sociais que nos trouxeram até aqui? Como apresentar Monteiro Lobato sem as referências segregadoras com que Tia Anastácia era tratada no século passado, expondo a herança escravocrata brasileira?
Procurado pela coluna, o canal Viva lembra, por meio de nota enviada por sua assessoria de comunicação, que as cartelas com aviso sobre contextos de época que resultaram em cenas hoje vistas como inadequadas começaram a ser utilizadas há dois anos, por meio de um aviso que informa: "Essa obra reproduz comportamentos e costumes da época em que foi realizada".
A medida se impôs desde "Da Cor do Pecado", uma inadequação que começa pelo título, mas que já foi muito celebrada na música de grande sucesso que inspirou João Emanuel Carneiro nesse enredo, o primeiro protagonizado por uma negra na Globo, no caso, Taís Araújo.
"O canal Viva equilibra diferentes compromissos com seus assinantes: oferecer entretenimento de qualidade, preservar a memória da teledramaturgia brasileira e, mesmo com uma grade fortemente marcada por produtos de acervo, assegurar que haja sintonia entre os conteúdos apresentados no canal e a audiência dos dias atuais, com cuidado para temas sensíveis e de impacto social".
"Em 2021", segue a nota, "adotamos a iniciativa de exibir cartelas de contexto de época, para lembrar os assinantes que obras reprisadas reproduzem costumes e comportamentos do tempo em que foram realizadas. Em situações excepcionais, quando se identifica um conteúdo que pode soar ofensivo a parcelas da audiência contemporânea, é feita uma análise criteriosa da conveniência da exibição."
O Viva lembra que este foi o caso de "Malhação" de 1998, "em que se decidiu suprimir capítulos da obra que traziam um episódio de blackface, que poderiam ferir a sensibilidade de parte da audiência."
Uma cena de blackface com Marco Nanini em "Êta Mundo Bom" também foi suprimida da reprise do Vale a Pena Ver de Novo em 2018, e olhe que se tratava de uma obra de apenas dois anos antes, uma evidência de como a correção de equívocos históricos tem sido acelerada.
Na verdade, essa cena já havia causado desconforto e crítica na ocasião em que foi ao ar originalmente, mas foi mal recebida pelo autor da novela, Walcyr Carrasco, e a direção da Globo à época preservou a autonomia do roteirista como palavra final.
Na sequência, o personagem do ator, professor Pancrácio, fingia ser negro para pedir esmolas na frente da igreja, corroborando ainda um estereótipo racista.
Mas a televisão e o cinema trataram o uso de blackface --atores pintados de pretos-- como algo normal por décadas. Em 1969/70, em vez de contratar um negro para protagonizar "A Cabana do Pai Tomás", a Globo pintou Sérgio Cardoso e fez valer a presença branca no elenco principal.
Por mais cartelas que a TV exiba para explicar erros do passado, as atuais gerações hão de notar a branquitude histórica das novelas brasileiras, algo que vem sendo quebrado aos poucos, há muito pouco tempo.
Em 2017, um movimento com adesão do elenco da própria novela chamou a atenção para a ausência de negros em "Segundo Sol", um enredo que se passava na Bahia, onde mais de 80% da população é preta. Mas não era algo inédito: as novelas e séries encenadas no estado mais negro do país sempre foram protagonizadas por brancos. Só então se deram conta disso.
Outra evidência da velocidade com que as revisões têm sido feitas em função de equívocos estruturais aconteceu em "Nos Tempos do Imperador" (2021), que teve de operar várias regravações ao longo da produção, após exibir uma cena de racismo reverso que passou despercebida por autores e diretor.
Além daquela questão, notou-se a necessidade de enfim passar a enxergar a princesa Isabel com olhar diferente da condescendência que sempre lhe atribuiu um viés heroico pela assinatura da Lei Áurea. Em 2021, há apenas dois anos, com todos os esforços anunciados para combater práticas seculares, as novelas continuavam tropeçando na visão unilateral da casa grande, sem enxergar a senzala.
O Viva explica que mesmo as cenas lá cortadas serão preservadas no seu serviço de streaming, dentro do pacote de publicação das obras originais. Hoje, a plataforma dispõe de vários títulos duplicados em versões distintas. "No Globoplay, a obra será resgatada em sua integralidade, com um aviso de contexto sobre a obra e o episódio editado."
"Por fim, reforçamos o caráter de exceção da edição. A regra, no Viva, continuará sendo exibir as obras com o maior grau possível de fidedignidade ao conteúdo original", conclui a explicação do canal.
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