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Zapping - Cristina Padiglione

Quem é a jornalista baiana que viralizou ao repudiar xenofobia de vereador gaúcho?

Apresentadora da TV Bahia, afiliada da Globo, Jéssica Senra fala à coluna sobre sua trajetória e como concilia análise com noticiário

A jornalista Jéssica Senra em cenário do jornal  Meio Dia Bahia
A jornalista baiana Jéssica Senra, pela TV Bahia, afiliada da Globo, viralizou ao reagir a discurso xenofóbico de vereador gaúcho que tentou justificar trabalho análogo à escravidão em vinícolas do Sul do Brasil - Reprodução
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São Paulo

O hábito de comentar fatos controversos com uma análise robusta diante das câmeras já é uma prática que o público da Bahia espera de Jéssica Senra, 39, a âncora que há dois dias assiste à viralização de um editorial seu no telejornal local Bahia Meio Dia, da TV Bahia, afiliada da Globo. Mesmo já tendo visto outros vídeos seus ganharem grande repercussão, nada se compara ao efeito deste último.

O texto é uma reação segura e sustentada por argumentos a um discurso xenofóbico do vereador Sandro Fantinel, de Caxias do Sul (RS), que acaba de ser expulso do partido Patriotas e terá sua cassação pedida pelo PSOL.

Até a manhã desta sexta-feira (3), em dois dias, Jéssica teve o vídeo visto por mais de 8 milhões de vezes só em sua página no Instagram, e 2 milhões em seu perfil no Twitter, fora as reproduções feitas por portais de notícia, inclusive alternativos, como Mídia Ninja, e páginas de influenciadores.

Jéssica Senra, jornalista da TV Bahia, afiliada da Globo
Jéssica Senra, jornalista da TV Bahia, afiliada da Globo - Divulgação

Ao defender as vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton, que tiveram trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão, o vereador afirmou que o problema eram os nordestinos e sugeriu que as empresas agora só contratassem argentinos, que trabalham melhor. "Os lá de cima são sujos. E a única cultura dos trabalhadores da Bahia é viver na praia tocando tambor".

"A gente toca até tambor muito bem, temos praias lindas, mas essa não é nossa única cultura não, viu, vereador? Nossa cultura é, também, não se deitar para autoritários, para tiranos, para senhores de engenho. Agora veja a ironia: o Rio Grande do Sul foi um estado colonizado por imigrantes europeus, principalmente os alemães e também italianos", disse Jéssica.

"Estes imigrantes não eram pessoas ricas que vinham investir no Brasil. Ao contrário: eram pessoas fugindo de crises econômicas na Europa para aqui se instalarem. Concessão de terras, subsídios financeiros, até roupas e animais para criar. Hoje, esse vereador de um estado construído aí com a força de pobres imigrantes, discrimina pessoas humildes em busca de oportunidades de trabalho."

A própria Jéssica é neta de imigrantes espanhóis, mas já de um outro momento, no século passado, longe dos imigrantes que chegaram logo após a abolição da escravatura, sob incentivo de um governo que visava "clarear" a população.

De família classe média baixa, estudou em "colégio de rico", o jesuíta Antonio Vieira, mas chegou lá com bolsa parcial, graças à avó, que trabalhava na instituição.

Jéssica já acumula outros vídeos bem vistos, sobre racismo, LGBTfobia e alguns sobre violência doméstica. Embora evite fazer comentários que fulanizem a análise, o que permite que aquele pensamento se estenda para casos similares, ela foi enfática ao questionar se o goleiro Bruno, condenado por matar a mãe de seu filho, deveria voltar a ocupar uma posição de ídolo, quando foi convidado pelo Bahia de Feira para jogar. O convite miou.

Em conversa com a coluna, Jéssica mostrou que não depende de um teleprompter para exibir a segurança que mostra diante das câmeras. Ela até escreve seus textões, como diz, para seguir um roteiro do que falar, sem perder o rumo e a responsabilidade, mas se permite fazer pequenos cacos no próprio script.

Formada em Jornalismo na Bahia, com pós-graduação em Barcelona, em curso ministrado em parceria com a Universidade de Columbia, ela agora faz mestrado na Universidade Federal da Bahia (UFBA) com foco em mulheres, gênero e feminismo.

O público de fora da Bahia certamente já cruzou com Jéssica em outras ocasiões, pela tela. Ela esteve até no rodízio de apresentadores regionais brindados pelo Jornal Nacional por ocasião das comemorações dos 50 anos do noticiário. E permaneceu no seleto grupo que depois seguiria apresentando o JN aos sábados uma vez por mês, sem abrir mão do delicioso sotaque. Mas a pandemia atropelou essa proposta da Globo (que agora, bem que poderia ser retomada, não?)

A TV Bahia foi buscar Jéssica na concorrência, há coisa de cinco anos, quando ela passou a liderar o ranking de audiência local com frequência, pela TV Record. Seu programa chegou a abocanhar 18% da audiência na faixa matutina. Quando recebeu a proposta para mudar de canal, certificou-se de que poderia continuar a fazer seus textõs analíticos, comentários e que tais.

Antes da Record, Jéssica passou pela Band, mas foi na rádio Metópole, em Salvador mesmo, que a jornalista ganhou experiência para fazer os longos editoriais que hoje acolhem tanta gente. O chefe, Mário Kertész, dispensava aquele tom professoral e empostado e incentivava uma linguagem coloquial, mas próxima do público.

A seguir, deixo a palavra com Jéssica, que fala bem melhor que esta colunista.

DO RÁDIO À TELA

"Comecei na Rádio Metrópole, onde o Mário Kertész, que é dono e um dos apresentadores, sempre se posicionou muito. Ele era político. E sempre propôs que a comunicação fosse uma comunicação mais próxima, ele não gostava do modelo de voz empostada, que tinha antigamente. Então, a minha escola foi essa, uma comunicação analítica e também opinativa.

Depois da Metrópole, eu trabalhei na Band, fiquei mais ou menos um ano na Band, passei 6, 7 anos na TV Record e depois vim pra TV Bahia.

Na Metrópole eu comecei em 2003, 20 anos atrás. Tive idas e vindas porque fui fazer um intercâmbio nos Estados Unidos, fui pra Espanha, fiquei indo e vindo, fiquei lá até 2010.

Na Record eu já comecei a trazer esses elementos que eu tinha na Metrópole, de opinar. A gente tinha muito espaço, então eu já comecei ali a me colocar e a colocar os meus pontos de vista. Aqui na Bahia, meu programa chegou a ser líder de audiência dois anos seguidos. Nós tínhamos a maior audiência de um telejornal local no Brasil, era o Bahia no Ar, pela manhã, chegamos a bater 18 pontos de manhã, era um fenômeno, e isso chamou a atenção da TV Bahia.

Apesar de eu estar na Record, que é uma emissora muito identificada com as pautas policiais, eu fazia um programa mais diverso, que tinha uma postura de comentarista mais analítica, sem aquele tom que a gente costuma chamar de sensacionalista."

TROCA DE CANAL

"A TV Bahia viu em mim alguém que podia ajudar num processo de reestruturação, buscando uma comunicação mais próxima. A TV Bahia sempre foi uma emissora identificada com as classes mais altas, havia essa fama de ser uma emissora que só falava a classes mais altas, e a emissora foi buscar chegar a outros públicos. E me convocaram nessa missão pra chegar mais próximo das pessoas que eu já tinha conquistado.

E as pessoas me perguntavam: mas você vai poder falar? Olha, se você vai pra Globo, vão te engessar, você não vai poder falar o que você pensa. Mas são cinco anos construindo isso, essa forma de falar dentro de uma afiliada da Rede Globo. A gente foi ajustando essa forma de comunicar.

Sempre que tem um assunto muito importante, geralmente eu converso com as chefias, e digo, ‘olha, vou fazer um texto’, ou ‘vou me posicionar, vou comentar’. Eles ficam cientes, e aí, dentro de todo o conteúdo que a gente traz, de relatar os fatos, de ouvir os envolvidos, de trazer opinião inclusive popular, eu amarro esse conteúdo como análise minha, ou sobre o fato, ou sobre algo que chame a atenção, sempre buscando fazer comentários que sirvam pra outros fatos também.

Eu evito falar daquele pessoa específica ou daquela situação. Por exemplo, quando a gente tem algum caso de racismo, eu parto dali pra falar sobre racismo. Se a gente fala de violência contra a mulher, eu trago a questão da relação de poder, muita gente acha que o estupro tem a ver com tesão masculino, mas, na verdade, ele está mais associado à vontade de se impor sobre o outro.

Sempre tentando trazer elementos pra reflexão."

LONGE DO GOL

"Em 2020, o golerio Bruno estava sendo contratado por um time aqui da Bahia, o Bahia de Feira, e eu fiz um desses textões que repercutiu muito, foi um dos primeiros vídeos que viralizaram assim geral, que foi a minha posição sobre ‘importante que pessoas condenadas tenham uma oportunidade de ressocialização, mas será que no caso do goleiro Bruno, que é uma pessoa que influencia outras, será que ele pode voltar a ter uma posição de ídolo?'

Legalmente, está autorizado, mas moralmente, a gente pode tolerar que esse homem volte pra essa posição de influenciar crianças e tal? Essa foi minha reflexão na época, e muitas pessoas no Brasil discutiram.

O clube voltou atrás, não contratou, porque na Bahia essa galera não se cria, não. Os baianos estão arrasados com o caso de Daniel Alves, é baiano de Juazeiro, esse vexame aí.

Tem outros vários vídeos que viralizam, mas naquelas bolhas pequenas. Já esse [contra a xenofobia] foi um vídeo que realmente mais me surpreendeu, o vídeo mais visto, mais comentado, foi uma surpresa grande pra mim esse impacto, apesar de estar um pouco acostumada a essas viralizações.

Foi muito impactante porque acho que é o momento que a gente está vivendo, depois desses últimos quatro anos, em que a intolerância vigorou muito no nosso país, eu acho que nós estávamos precisando colocar pra fora essa vontade de ‘não’, de ‘basta’, ‘não queremos mais’, sabe? Não faz sentido essa intolerância.

ESPONTANEIDADE OU TELEPROMPTER?

"Depende. Eu vou comentando todas as notícias pontuando, às vezes é só uma reação, um caquinho, às vezes é um comentário mais extenso, depende da notícia. Durante o programa, eu faço muitos comentários de improviso. Tem uns que já são mais polêmicos, que eu já sei que vai rolar aquele assunto.

Muitas vezes são os colegas que falam: ‘Venha cá, hoje vai ter textão, né?' 'Hoje você tem que falar.' Às vezes eu nem tinha pensado em falar sobre aquilo e digo: ‘Opa, as pessoas estão esperando’.
No caso desse, de fato eu escrevi um texto, mas toda vez que eu escrevo eu vou colocando algumas pitadinhas.

O início do texto, por exemplo, que eu falo que a gente ‘toca tambor mas não se deita pra tiranos e autoritários e senhores de engenho, aquilo ali foi tudo no improviso, aquilo eu não tinha escrito. E foi ouvindo ele falar, que fiquei indignada e me lembrei do nosso Hino ao 2 de julho.

O povo baiano sempre foi um povo de luta. A Independência do Brasil na Bahia... Porque o 7 de Setembro foi uma independência pra inglês ver, a Independência mesmo foi no 2 de julho de 1823, quando os povos baianos conseguiram expulsar os portugueses, havia mulheres envolvidas inclusive.

E o nosso Hino ao 2 de Julho fala ‘Com tiranos não combinam brasileiros corações’, é um hino muito bonito, de repudiar o autoritarismo, as ditaduras, então, naquele momento me veio essa lembrança do nosso hino, e eu falei 'nossa cultura também é de não se deitar para autoritários e tiranos'.
Ali foi de improviso. E a partir do ‘Veja que ironia’ aquilo já estava escrito. O texto tem um começo, meio e fim e uma conclusão, mas ali no meio eu posso ir dando umas pitadinhas, interpretando conforme vai surgindo.

Tem uma preparação prévia, um estudo pra gente não falar besteira, porque a responsabilidade é grande, é importante que [reflexões sobre] esses temas mais polêmicos estejam escritos e pensados, mas eu deixo margem também para a intuição e o sentimento do momento.

Às vezes é espontâneo, não dá tempo de avisar, mas eu tenho mais ou menos um acordo com os meus chefes de avisar antes: ‘Vou falar sobre isso’. Se eu puder escrever, eles dão uma olhada, dão uma ponderada, porque é sempre importante outros olhares. Sempre ouvi: ‘quem escreve não edita’.

É importante ter alguém que tenha outra visão: ‘faltou isso’, ‘isso aqui está demais’, ‘está excessivo’. Tem essa conversa. Eu tenho autonomia, respeitando a linha editorial do jornal e a TV também.
Os baianos sabem que a opinião é minha, não exatamente da emissora, mas eu não posso ir contra os princípios da emissora."

EU QUERO JUSTIÇA

"Agora estou fazendo mestrado porque acabei sentindo essa necessidade de voltar a estudar formalmente, e o estudo de gênero amplia muito a nossa visão social, porque quando a gente vai falar de mulher, a gente vai falar de mulher preta, mulher pobre, mulher LGBT, mulheres diversas, o que amplia o nosso olhar para mulheres diversas.

Minha história de vida sempre foi de buscar um jornalismo voltado para a justiça social, provocar reflexões. Com dez anos de idade, a gente fez um livro de poesias com todos os alunos na escola, e a minha poesia já falava sobre o direito das crianças que não tinham lar, não tinham comida, enfim, estudei num colégio jesuíta que levava muito a gente para outros locais para conhecer outras realidades."

ORIGEM ESPANHOLA, AFRICANA E INDÍGENA

"Eu sou neta de imigrantes, meus avós vieram da Espanha, também fugindo da crise econômica espanhola. Aqui em Salvador a gente tem uma comunidade espanhola muito grande. No caso da minha família, a meu avô veio aos 12 anos de idade. Antes eu falava com muito orgulho ‘meu avô dormia na padaria, acordava 4 da manhã'.

Só a família materna é espanhola. A paterna é daqui, miscigenada, com características indígenas, negras e brancas, bem misturado. Às vezes falo de assuntos sem que sejam meu lugar de fala. Falo de racismo, por exemplo, como alguém que estudou e analisa aquilo, não como quem sentiu.

Meu lugar de fala nisso é o lugar da branquitude, sei como os meus familiares, amigos e pessoas da minha classe se comportam, então eu tenho esse olhar."

PARECIA COPA

"Sobre o JN, eu fui a representante da Bahia no JN, cheguei a ser convidada para permanecer na escala [dos fins de semana] –eu, Aline Aguiar, de Minas, e Márcio Bomfim de Pernambuco, fomos convidados a ficar na escala fixa, eu cheguei a fazer um sábado com Heraldo Pereira, mas aí foi 2020, veio a pandemia e o rodízio voltou a se concentrar no Rio.

Aquilo foi tão importante pro povo da Bahia, a gente se ver ali naquela bancada, aquele projeto foi genial, foi um sentimento de outros estados também, ver um representante seu, com seu sotaque, na bancada do Jornal Nacional. Aqui parecia Copa do Mundo, botaram telão na rua, o povo comemorou, me viu no aeroporto e dizia: ‘Vai, boa sorte!’

E eu ainda cheguei lá e falei do meu Bahia, que ganhou do Vasco! Pronto, aí o povo aqui foi à loucura.
Falamos no 2 de Julho também. Eu fui lá no 7 de setembro, claro, a gente falava da Independência do Brasil, mas assim que eu cheguei eu falei: ‘Opa, vamos deixar registrado que a Independência...' --porque eu sou bairrista, eu sou muito bairrista, todo mundo está vendo que eu defendo a minha Bahia com unhas e dentes--, ‘vamos deixar registrado que esse 7 de setembro só foi concretizado no 2 de julho do ano seguinte?’

E aí, de fato, a gente incluiu ali uma notinha sobre o nosso 2 de julho, porque o Brasil não conhece a nossa história. Falei sobre isso na sexta-feira [véspera da edição que apresentou], quando estavam pensando o jornal do dia seguinte. Falei com o [William] Bonner, com a Cristina Sousa Cruz, editora. E eles toparam."

PROTAGONISMO É DA NOTÍCIA

"Eu não gosto de falar de mim, sou muito discreta, mas gosto de conversar sobre ideias, sobre meu trabalho e o que a gente busca fazer. Somos da escola antiga de jornalismo, em que jornalista não tem que ser notícia. Eu quero que o que eu digo vire notícia, mas não eu."

Zapping - Cristina Padiglione

Cristina Padiglione é jornalista e escreve sobre televisão. Cobre a área desde 1991, quando a TV paga ainda engatinhava. Passou pelas Redações dos jornais Folha da Tarde (1992-1995), Jornal da Tarde (1995-1997), Folha (1997-1999) e O Estado de S. Paulo (2000-2016). Também assina o blog Telepadi (telepadi.folha.com.br).

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