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Zapping - Cristina Padiglione

Garimpo de Serra Pelada é revisitado em Nova York por exposição com Ernesto Varela

Para Marcelo Tas, tragédia yanomami torna atual produção de 1984 que põe o Brasil em mostra mundial de vídeos transformadores

Luc Athayde-Rizzaro no MoMA, em NY
Luc Athayde-Rizzaro, filho de Marcelo Tas, posa ao lado de telona que reproduz a reportagem feita pelo pai em 1984 em Serra Pelada, em exposição no MoMA, museu de arte moderna de Nova york - Nicholas Athayde-Rizzaro/Acervo Pessoal
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São Paulo

O Repórter Ernesto Varela, personagem que inaugurou a fama de Marcelo Tas ainda nos anos 1980, estará no MoMA (The Museum of Modern Art), Museu de Arte Moderna de Nova York, a partir deste domingo, 5 de março, até 8 de julho. O documentário, resultado da visita que ele e o hoje cineasta Fernando Meirelles fizeram a Serra Pelada (PA) em 1984, é uma das dezenas de trabalhos reunidos para a exposição "Signals: How Video Transformed The World" ("Como o Video Transformou o Mundo"). A proposta é destacar o papel do vídeo como agente de transformação social e lembrar toda a diferença que a tecnologia promoveu na sociedade.

Algumas das obras expostas, inclusive esta, poderão ser vistas em visitas remotas, por meio do site do MoMA, além de estarem no local para visitação física, o que Luc Athayde-Rizzaro, filho de Tas e morador de Nova York, já conferiu em uma avant première nesta quinta (2).

Para o intérprete de Varela, o registro, que mostra a atividade do garimpo de Serra Pelada de modo tão distinto da operação que atualmente causa a desgraça dos Yanomamis em Roraima, ainda guarda semelhanças com o cenário que ele e Meirelles descortinaram na ocasião.

"É muito diferente, e infelizmente, algumas coisas são muito iguais", disse ele à coluna. "As últimas perguntas que eu faço no 'Serra Pelada' são: 'Qual é o valor que existe no ouro?' 'Por que você anda com esse elemento pendurado no pescoço?' E no finalzinho do vídeo, pergunto: 'Pra que você está buscando ouro?'. ‘Pra poder comprar as coisas’, ele responde. 'E depois que você comprar?’ ‘Aí eu gasto tudo’, diz. 'E depois?', insisto. E ele: 'Aí eu volto pra cá pro garimpo pra conseguir mais ouro’."

"Esse cachorro mordendo o rabo", continua, "é o que acontece na terra dos Yanomamis, é gente que vai lá, que tira as riquezas da terra e não tem ideia do valor daquilo, vende por um preço que geralmente, quem está lá na terra, ganha uma ínfima parte, ele é a bucha de canhão. E no caso de Serra Pelada, também era assim", completa.

"Infelizmente, esse vídeo do Varela é muito atual, como conceito, de tentar entender por que a gente extrai isso da terra, destrói o lugar de onde você está extraindo, e não se beneficia daquilo." Tas lembra que ele, Meirelles e Flávio de Carvalho compunham a equipe completa em Serra Pelada, autorizada a pisar lá pelo Major Curió, uma espécie de passaporte obrigatório para ir ao local, em nome da hoje extinta Abril Vídeo.

A câmera ainda pesava 13 Kg e não tinha sensibilidade para filmar à noite ou nos buracos cavados pelos garimpeiros. O documentário foi alvo de incômodo para a crítica do jornal Libération, da França, que questionou o tom de humor em meio àquela desgraça onde tudo era sujo, precário e desumano.

Ao perceberem que Tas havia esquecido de levar uma gravata, item do figurino do personagem, o repórter e seu câmera, chamado por ele como Valdeci, fizeram da ausência da peça o rumo do roteiro em Serra Pelada, e saíram em busca de uma gravata. "Nossa ideia era justamente humanizar aquele cenário". Quem ali poderia vender ou emprestar algo parecido para Varela, em meio a lojas de bugigangas, trocas de mercadoria e abatedouros de bois com restos de osso e carne expostos a céu aberto, coberto de moscas?

Tas lembra que o trio chegou a Serra Pelada ainda antes que o fotógrafo Sebastião Salgado estivesse no local para eternizar as imagens por suas lentes, de modo que eles tinham pouca referência do que lá encontrariam. Ficaram por quatro dias e dormiram debaixo de uma mesa de um escritório da administração. Sorte nossa que, além de ficar por alguns dias em exposição no MoMA, o doc também está no YouTube, como indicamos abaixo, no canal do Repórter Ernesto Varela, repleto de boas histórias daquela safra.

A exposição "Signals" investiga como artistas como John Akomfrah e o Black Audio Film, Gretchen Bender, Dara Birnbaum, Tony Cokes, Chto Delat, Song Dong, Harun Farocki, Amar Kanwar, Dana Kavelina, Marta Minujín, Carlos Motta, New Red Order, Nam June Paik, Tiffany Sia, Martine Syms, Ming Wong, Nil Yalter, e tantos outros vêm usando o vídeo ao longo das últimas seis décadas como ferramenta social capaz de afetar questões como democracia, políticas identitárias, economia, educação e tecnologia.

A relação de artistas, para a alegria de Tas, inclui o nome do coreano Nam June Paik, grande guru da Olhar Eletrônico, produtora que uniu o que ele trata como um grande caldeirão de criação de ideias nos anos 1980, de onde surgiu Ernesto Varela. Gretchen Bender, também na exposição do MoMA, foi outra forte referência para aquela turma. Embora tenham sido batizados e finalizados pela tabelinha entre Tas e Fernando Meirelles, Ernesto Varela e Valdeci são fruto de um caldo de estudantes em busca de novos olhares, reunindo o pessoal da arquitetura (caso de Meirelles), da engenharia (Tas) e até da filosofia, área de Renato Barbieri.

Apenas Toniko Mello, que também exerceu o papel de Valdeci, vinha propriamente de uma faculdade de comunicação, no caso, Rádio e TV. O time reunia ainda Dario Vizeu, Marcelo Machado, Paulo Morelli, Beto Salatini, Paula Cesarino Costa e outros, como Sandra Annenberg, que botou o rosto no vídeo quando ainda tinha 15 anos e cursava o Ensino Médio. Tinha ainda Adriano Goldman, que hoje assina a direção de fotografia de aclamada série "The Crown", da Netflix.

Naquele início de década de 1980 em que ninguém poderia imaginar o alcance de uma câmera de celular como a atual geração conhece hoje, Meirelles e Machado dividiram o ônus de importar duas câmeras como consumidores físicos, com seus CPFs, algo inimaginável para um mundo onde só as emissoras de TV, munidas de registro comercial, podiam comprar equipamentos de filmar.

Foi a partir das câmeras trazidas pelos dois --uma delas cedida a José Celso Martinez Corrêa para os lendários registros do Teatro Oficina, pelas mãos de Tadeu Jungle-- que o pessoal da Olhar iniciou uma revolução no modo de literalmente olhar as cenas registradas para a TV, justamente como essa exposição do MoMA enxerga as obras e artistas selecionados para tanto.

Tas conta que o documentário de Serra Pelada já fazia parte do acervo do MoMA desde a década de 1980, quando ele morou na cidade, mas comemora que o material esteja sendo revisitado para o alcance do público bem neste ano em que Varela vai completar 40 anos de existência. A Olhar Eletrônico começou a colocar suas produções na tela em 22 de agosto de 1983, quando o jornalista Goulart de Andrade abriu espaço para aquelas produções em seu programa, ao vivo, pela TV Gazeta.

Sim, a Gazeta era o YouTube ou o TikTok daquele tempo, com espaço para uma linguagem experimental que depois foi furando bolhas e chegando a outros canais, como Band, SBT, Record e, mais timidamente, Globo. O time da produtora que viria a parir a O2 Filmes, hoje uma das mais bem sucedidas do mercado audiovisual brasileiro, se reúne ainda quinzenalmente para discutir novos caminhos para as telas e conversa com frequência por meio de um grupo de WhatsApp.

"É gente que brinca com linguagem, pega a linguagem da TV e mastiga", afirma. "Monty Python faz isso, CQC faz isso, Porta dos Fundos faz isso, usa humor não só pelo texto, mas pela montagem, pelo jeito que a câmera olha, e o Varela, pra mim está nesse vetor."

Abaixo, confira a primeira parte de Serra Pelada pelo olhar de Ernesto Varela e Valdeci, ou Tas e Meirelles.

Zapping - Cristina Padiglione

Cristina Padiglione é jornalista e escreve sobre televisão. Cobre a área desde 1991, quando a TV paga ainda engatinhava. Passou pelas Redações dos jornais Folha da Tarde (1992-1995), Jornal da Tarde (1995-1997), Folha (1997-1999) e O Estado de S. Paulo (2000-2016). Também assina o blog Telepadi (telepadi.folha.com.br).

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