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Zapping - Cristina Padiglione

'Todas as Flores': Thalita Carauta põe Mauritânia para furar bolhas

Aclamada por gays, drags, bi ou heterossexuais de todas as idades, personagem chega ao coração dos conservadores, acredita atriz

Thalita Carauta vestida de Mauritânia na festa de lançamento da novela 'Todas as Flores' - Instagram/thalitacarauta
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São Paulo

Na apresentação que o GloboPlay fez domingo, 4, durante a CCXP22, evento da maior importância para ganhar a atenção do tão disputado consumidor de vídeos, o espaço reservado à novela "Todas as Flores", de João Emanuel Carneiro, não foi contemplado por nenhuma de suas protagonistas.

Nem Maíra (Sophie Charlotte) nem Vanessa (Letícia Colin) deram as caras naquele palco na ocasião.
Quem veio trazer ao público algumas dicas do que esperar do folhetim em sua segunda temporada, a partir de abril, foi a diva Mauritânia, disfarçada de Thalita Carauta.

A apresentadora Sabrina Sato e a atriz Thalita Carauta
Sabrina Sato e Thalita Carauto no palco da sessão GloboPlay na CCXP22, falam sobre a novela 'Todas as Flores' - Cristina Padiglione

Ao trazê-la à cena, Sabrina Sato, mestre de cerimônias da sessão, de fato chamou a atenção para a camaleonice da atriz, que confessa receber muito retorno do público sobre a repercussão da personagem, mas não é reconhecida nas ruas nessa mesma medida. A professora Eliete da dramática "Segunda Chamada", só para ficar na esfera do GloboPlay, provocava até mais tietagem.

Talvez seja efeito do figurino alegórico, digno de drag queen, exaltado por Mauri. Ou seria a elasticidade daquele tom de voz que trafega do grave ao agudo, do drama à comédia, em questão de segundos?

Melhor apostar que é obra de atriz.

À coluna, Thalita conta que vem despertando olhares e ouvidos de tribos distintas, especialmente dos gays, sim, nicho capaz de ostentar nas redes sociais faixas como #SomosTodosMauritânia. Mas também de senhorinhas e crianças, do campo progressista ou conservador –um mérito para quem se orgulha de ter trabalhado em filmes adultos como "Sinhá Não é Mais Moça".

É possível cravar que os melhores diálogos de João Emanuel em "Todas as Flores" estejam no script de Thalita, intérprete dessa mulher de fibra (com perdão pelo clichê) e inteligência genuína, pronta para debochar dos que tentam defender seu cancelamento porque, veja bem, autenticidade é para quem banca o que faz e aprecia. E que culpa tem ela de gostar de sexo e valorizar o que é belo?

Em cena antológica com Nilton Bicudo (cujo personagem morreu, mas já que isso é novela, bem poderia voltar), Mauritânia ofereceu macarrão com salsicha como opção de menu para o champagne importado trazido por Raulzito. Foi ele que despertou nela a autoestima capaz de inspirar Mauri a revolucionar a marca que lhe deixou de herança.

Melhor novela do Grupo Globo atualmente, "Todas as Flores" terá sua primeira temporada despejada no GloboPlay até o dia 14, reservando a outra metade de seus 85 capítulos para serem liberados só a partir de abril. Mas tudo será gravado até 31 de dezembro, e Thalita assegura que não viu até agora como a história termina. A produção só ganhará a tela da TV aberta em outubro de 2022, ou assim está previsto.

Confira a seguir os principais trechos da nossa conversa:

Mauritânia é muito celebrada na minha bolha de conhecidos. Você sente o sucesso dela como algo segmentado em determinado nicho ou há reações de tribos diversas?
Thalita Carauta -
É engraçado você falar isso, porque uma das coisas que eu reparei é que vem esse carinho, esse afeto, não sei exatamente o sentimento que despertou nas pessoas, mas que vem assim de várias bolhas, de pessoas diferentes e distintas. E eu não tenho muito perfil em rede social, só tenho Instagram, mas recebo muitas coisas de amigos meus, que mandam pelo Whatsapp, e amigos distintos. Na rua, engraçado que esse personagem, não sei se é tão diferente, não sei se as pessoas tinham me visto com essa caracterização toda, mas na rua eu não to sendo muito reconhecida.

Eu já fui mais reconhecida até pela Eliete ["Segunda Chamada"] do que pela Mauritânia. O que me chega é que eu fico muito feliz e impressionada como vem de públicos distintos mesmo, isso está sendo muito sensacional observar.

De conservadores também?
Acredito que sim. Por mais que seja uma personagem que vá contra o conservadorismo, ela tem elementos que faz com que as pessoas gostem dela ou tenham afinidades com ela. São elementos de uma mulher muito batalhadora, que consegue, apesar de tudo e de tanta hostilidade, manter uma luz ali e encarar as coisas com uma certa positividade.

Uma personagem que é atriz de filmes adultos, que é garota de programa, te causa um ponto de interrogação: como vai ser isso com um público mais conservador? Mas acho que ela tem tantas outras abas, que as pessoas acabam comprando a ideia dela, entendendo outros aspectos dela e acabam torcendo por essa personagem.

O pouco do que eu pude observar é que esse retorno vem de públicos distintos mesmo, um pouco senhoras, até criança, adolescente, a pessoas que estão na frente das lutas e levantam bandeiras, as pessoas mais conservadoras mesmo, homens de família. Então é interessante observar uma personagem que chega com esse impacto que vai direto numa questão moral e consegue trazer tantos afetos.

Como vê esse confronto com o conservadorismo evidenciado pela relação com o Luís Felipe, personagem de Cássio Gabus?
É bem interessante ver como é feito esse desenho. Acho que essa cena foi bem elaborada dramaturgicamente com esse intuito, de mostrar esses dois universos, e que bom que o discurso da novela foi pra exaltar essa mulher nesse momento, quando ela se defende, e em nenhum momento baixa a cabeça. Mesmo que aquilo bata fundo nela e doa, ela mantém uma dignidade, e é interessante ver esse confronto.

A novela dá esse espaço pra gente entrar nesse discurso de uma maneira mais pró-ativa: olhem pra essa mulher. E ela levanta essa questão do caráter. Geralmente, essas mulheres são muito marginalizadas, o olhar pra elas é muito marginalizado. Ver uma figura ali mantendo a sua dignidade, e os autores peitarem esse lugar, debatendo com esse conservadorismo, esse hipócrita, representado no personagem do Luís Felipe, é muito legal, é bom pra todo mundo, é o que faz o ofício valer a pena, quando ele tem um propósito de comunicar o que é tão importante.

A mesma Mauritânia que se permitia ser explorada por um namorado esporádico agora peita Luís Felipe e subverte a objetificação de gênero, valorizando a sensualização dos seus vendedores homens. Você enxerga aí um paradoxo?
Acho que vai de uma construção. O personagem do Raulzito entra com uma peça muito importante pra ligar uma chave na Mauritânia, e isso é muito mais que a autoestima. A autoestima parte do momento em que você começa a se olhar e a se dar valor. E acho que quem faz isso com ela é o Raulzito, que começa a enxergar nela uma mulher que realmente tem potencial, que realmente é talentosa, e ela está ali, num momento de autoestima tão baixa, que tem várias cenas dela com Raulzito que ela não acredita. Ela dá um tapa na cara dele e o manda embora, porque é muito difícil, quando você está se sentindo muito machucado, ou muito pequeno, enxergar a sua grandeza.

Então, isso vem através do Raulzito, que começa a despertar esse olhar nela. Ela ganha essa fortuna, aos poucos, vai entrando naquela loja, naquele ambiente, que também é hostil, só que vai pra um lugar mais moral, mais elitizado, mais burguês, e ela vai ali aos poucos se empoderando com alguns aliados, o Rafael, a Joy, ela vai entendendo que aquilo é uma selva e aos poucos vai encarando Vanessa, encara o Luis Felipe, então, ela aposta, dá várias investidas na loja, de mudar o cenário da loja antes do concurso, de ousar mais.

A novela é gravada com alguma antecedência para que cinco capítulos sejam disponibilizados por semana. Isso faz da produção uma obra mais fechada que uma novela de TV aberta?
Eu entrei só no quinto episódio, recebi os roteiros do quinto ao vigésimo, comecei a gravar em julho, a partir de julho comecei a gravar e só tinha fechados esses 20 capítulos. Então, é meio um misto, continua sendo um formato de novela e as coisas vão acontecendo. E as novelas do João são muito assim, então, dependendo do que chega, você fala: ‘Caramba, preciso levantar a bola porque lá na frente vai ter um corte desse’.

A gente ainda mantém essa estrutura de novela aberta e a gente fica sem saber exatamente o que vai acontecer, a maior parte da novela foi sem a gente ter o total. E o final mesmo eu não tenho até hoje, o final a gente não recebe, a gente vai recebendo aos poucos, tem a mesma dinâmica de novela na TV aberta.

Mauritânia vai do riso ao drama. Você consegue achar graça em momentos de dor que soam engraçados vistos a distância?
Até humor eu sempre tratei com muita seriedade. Não acredito que se consiga fazer humor se não tiver uma verdade muito profunda. Fazer humor não é piada. Você pode fazer humor sem piada, o que não pode, por exemplo, é fazer piada sem humor.

Mesmo quando eu fazia personagens que eram especificamente para humor, não vejo diferença na construção do personagem. Vejo diferença na finalidade: a finalidade de fazer rir, de ir em camadas mais sensíveis, ou de só fazer chorar, ou de fazer rir e chorar. É entender a finalidade das personagens, mas como se constrói, é com a mesma verdade, com a mesma coerência, não existe humor se não estiver houver coerência de algo que realmente faça sentido e que as pessoas possam acreditar.

O passo mais delicado e que talvez as pessoas mais se equivoquem é achar que o humor não precisa necessariamente ter verdade. Tem que ser crível, tem que ter verossimilhança, senão não conecta. Por mais que o humor transite nessa flutuação de quebrar o pacto com a realidade --e realidade é diferente de verdade, porque você pode quebrar os pactos realistas, naturalistas, mas a verdade não pode faltar--, acho que é nisso que pecam na hora de fazer humor, de achar que é só piada, de achar que você não tem responsabilidade.

Tem uma frase, não sei se é do Chico Anysio, que é mais ou menos isso, ‘o humor serve pra tudo, inclusive pra fazer rir’. Então, tira o humor desse lugar da piada, do quá-quá-quá. O humor é uma maneira divergente de às vezes ver um ponto de vista, que sai duma curva, que a gente costuma olhar de uma maneira muito reta, e te apresenta um olhar mais diferenciado.

Você endossa aquela ideia de que é mais difícil fazer rir do que chorar?
Eu acho mesmo que fazer humor é muito mais difícil do que fazer drama. O humor é mais direto, mais imediato. Você vai assistir a uma peça de teatro que é um drama, não necessariamente precisa sair de lá chorando. Você vai se sensibilizar, vai ser tocado. O humor, se está lá em cartaz uma peça de comédia, se assistiu e não riu, não teve peça. É específico, ou acontece ou não.

O humor é tão específico, que tem ator que canta, tem ator que sapateia e tem ator que faz humor. Nem todo ator é humorista, mas todo humorista é ator.

Até que ponto esse flerte da Mauritânia com o universo de drag queen foi brifado pelo autor ou pelo figurino?
Esse figurino chegou pronto, e é até um trabalho que recebeu nota 10 [da coluna de Patrícia Kogut, no jornal O Globo, critério disputadíssimo entre profissionais de TV]. O que eu recebo de feedback tem muito a ver com o figurino, as roupas dela, que são muito bafônicas. É uma criação conjunta, é muito bacana ver o que o autor vai trazer, o que o figurino vai trazer.


Tem expectativa para o desfecho dessa mulher? Será que ela se reconcilia com a mãe a filha?
Esse momento, agora, a gente vai entrar muito nessa relação dela com a família. Que ela consiga se entender com a família e consiga encontrar o amor, acho que a família tem um espaço, de vontade dela, de importância pra ela.

Ela peita, peita, peita, mas quando chega ali na família... E às vezes a gente é assim na vida também, às vezes, no profissional as pessoas são fortes, mas as relações familiares são fragilizadas, a gente costuma romantizar as relações familiares, acho muito bonito isso que a Mauritania vem trazendo também, ela tem uma banca ali no profissional, mas quando chega diante da mãe, da filha, ela chora, porque realmente vem de outra lugar, são outras histórias, outras camadas, o núcleo familiar sempre nos diz muito, sempre nos toca muito, então eu torço pra que ela consiga encontrar uma paz nesse lugar, independente de como eles consigam solucionar a lavação de roupa suja. E espero que ela consiga continuar brilhando na carreira dela e consiga encontrar um amor.

Tem algo que você queira dizer e eu não perguntei?
Um ponto interessante que você falou e eu não sei se esse é o olhar da Mauritania é em relação à objetificação dos meninos. Acho que ela tem uma relação outra com sensualidade e sexualidade, acho que ela tem isso muito bem resolvido. Acho que ela enxerga beleza e potência nisso, ali é uma loja de homens, não é uma loja de homens e mulheres, independente do concurso que ela tem ali, de que gênero fosse, eu acho que ela iria por esse lado, porque ela veria beleza e potência nisso.

Até no texto que ela fala com o Luis Felipe, quando ela assume: ‘Por quê? Porque eu já fui prostituta? Porque eu assumo o que eu sou e do que eu gosto? Porque eu gosto’.

Ela gosta. Isso foi uma coisa que eu fiz questão de colocar. Quando os meninos começam a tirar foto, que ela começa a sugerir de fazer algo que tenha mais veneno, mais pimenta, ela pergunta: "Pode tirar [a camisa]? Sim ou não? Depois de ‘não’, tudo é assédio." Então, ela também constrói um cenário pra que esses meninos fiquem muito à vontade.

O olhar dela não vai pra objetificação, vai pra esse olhar de enxergar a potência.

É bom que você faça essa ressalva.
Outro ponto que eu acho muito interessante, partindo disso: olha como é, pra uma sociedade (por isso é difícil para o conservadorismo representado no Luís Felipe e em tantos outros), engolir essa mulher, porque como é que você faz com uma mulher que tem liberdade sexual e liberdade financeira? Mesmo na época do perrengue dela, ela se bancava. E mais: uma liberdade financeira, vinda de uma liberdade sexual?

É uma mulher que está disposta a tudo, ela ganha dinheiro com isso. Por mais que ela tenha sido colocada naquele contexto, com a situação da mãe, ela foi expulsa de casa, isso também está no lugar de quem gosta do que faz. E não vê nenhum problema em mostrar o corpo, ela vê a sexualidade como potência, como beleza.

Mauritânia é excêntrica e amiga de travesti. Isso gera identificação maior no público gay?
Acho que é o público que eu mais recebo gritaria, empolgação. Caramba, '#SomosTodosMauritânia. Acho que é o público que mais curte. Amo quando a Patsy [Suzy Rêgo] chama ela de travesti, e ela diz ‘que pena, ninguém é perfeito’, é maravilhoso.

E o Nilton Bicudo, não pode voltar, só para esticar a parceria de Mauri e Raulzito?
Eu torcia pra que ele voltasse no final, como ninguém viu o corpo dele no incêndio, ia ser maravilhoso vê-lo voltando no final, até pra saber como ela se saiu na empresa, seria bafônico.

Zapping - Cristina Padiglione

Cristina Padiglione é jornalista e escreve sobre televisão. Cobre a área desde 1991, quando a TV paga ainda engatinhava. Passou pelas Redações dos jornais Folha da Tarde (1992-1995), Jornal da Tarde (1995-1997), Folha (1997-1999) e O Estado de S. Paulo (2000-2016). Também assina o blog Telepadi (telepadi.folha.com.br).

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