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Zapping - Cristina Padiglione

Fiel à cultura regional, Rolando Boldrin não era de fazer concessões

Em depoimento resgatado pela série Dois Diretores em Cena, ele fala da origem do Som Brasil na TV Globo

Rolando Boldrin em gramado dos estudios da TV Cultura, em junho de 2015 - Eduardo Knapp 15.07.2015/Folhapress
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São Paulo

A história do Sr. Brasil, programa apresentado na TV Cultura por Rolando Boldrin, tem no seu DNA a trajetória do Som Brasil, criado por ele nos anos 1980 na Globo. Boldrin, que morreu nesta quarta-feira, 9, aos 86 anos, em São Paulo, resgatou a história do Som Brasil em um minucioso depoimento apresentado na série Dois Diretores em Cena, que Antônio Augusto Amaral de Carvalho, o "seu" Tuta, fundador da Rádio Jovem Pan, e o diretor Nilton Travesso apresentaram na própria Jovem Pan entre 2011 e 2013.

Tuta e Travesso relembravam entrevistas e histórias de bastidores referentes especialmente à primeira década da TV Record, onde ambos trabalharam, lembrando que Tuta era filho do fundador da emissora, Paulo Machado de Carvalho. O episódio em que trazem Boldrin à tona mostra como o ator e apresentador batia o pé por seus projetos até nas entrelinhas, fazendo valer sua fidelidade à palavra e à cultura regional brasileira.

Com quase 500 episódios, a série Dois Diretores em Cena está disponível em podcast e traz uma infinidade de histórias sobre os maiores ícones da nossa música e da TV brasileira, passando especialmente por Elis Regina, Roberto Carlos, Silvio Santos, Hebe Camargo, Ronald Golias e os grandes festivais de música da década de 1960.

Embora a essência da série seja sobre a era dos Machado de Carvalho na Record, Travesso, que implantou o TV Mulher, o Balão Mágico e o próprio Som Brasil na Globo, tendo também sido responsável pelo lançamento dos primeiros videoclipes da TV brasileira, pelo Fantástico, relembra em alguns episódios sobre suas criações fora da Record, que se estendem a êxitos na extinta Rede Manchete e no SBT.

O capítulo sobre Boldrin está numerado como 286. Eis o que o ator, músico e apresentador conta sobre o Som Brasil:

"Quando eu comecei a fazer o programa na TV Globo, que eles me contrataram pra fazer um projeto meu, eles queriam que eu fizesse um programa direcionado ao homem do campo, pura e simplesmente, e eu me recusei, porque eu sempre quis cantar o Brasil e o Brasil não é o Estado de São Paulo só, o Brasil não é só interior, o Brasil é uma imensidão. E eu até impus o nome 'Som Brasil' porque eles queriam que chamasse 'Som Rural'. Como o que eu queria fazer no meu projeto era brasileiro, eu disse: 'Não, eu não posso fazer um programa com um título que é uma coisa e eu cantar outra.

Aí, o Nilton Travesso, que era o diretor aqui em São Paulo, disse assim: ‘Como é que você colocaria o nome nesse seu trabalho?’ Eu disse: ‘Som Brasil’. Hoje, como o título ficou pra Globo, registrado, eu trabalho com um programa chamado 'Empório Brasil', que é pra dar a mesma ideia, que eu vou fazer shows em todos os lugares do país, no Nordeste, no Sul do país, e eu conto as mesmas histórias.

Eu conto histórias de todos os tipos, do brasileiro do Norte, do Sul, historinha de gaúcho, eu conto um poema gaúcho, um poema caipira paulista, nordestino e agrada do mesmo jeito, em qualquer lugar. Eles entendem a piada do mesmo jeito, eles entendem o causo do mesmo jeito, eles percebem o meu trabalho. Eu canto uma música do Patativa chamada 'Vá pra Estrela' e 'Boi Fubá', e depois canto 'A Mágoa', do Lucípinio. É um salto. Eu canto 'A Mulher do Boticário', que é uma coisa leve, do Manezinho, depois canto uma moda de viola, minha ou de outro compositor.

É um trabalho misturado, como o próprio nome, Empório, diz."

A série resgata ainda um exemplo de Boldrin contando um de seus causos, fiel à prosódia caipira: "Pitoco era um cachorrinho que eu ganhei do meu padrinho numa noite de Natá. Era esperto, bem ativo e tinha dois óio bem vivo sartando de lá pra cá. De manhã cedo, quando eu me levantava, Pitoco é que me acordava, cos latido sem pará, me fazia tanta festa, lambia inté minha testa, chegava inté me beijar. E domingo bem cedinho, eu pegava meus bodoquinho, pelote num imborná, Pitoco corria na frente, dando sarto de contente, rolando nos capinzar.

Era domingo de mês, dia de Santa Inês, tinha festa no arraiar. Minha mãe c’o as criançada tudo de roupa trocada, na capela foi rezá, e eu fugindo pro uma estrada, com Pitoco fui caçar. Hoje, doi a minha consciência da minha desobediência em não podê lhe sarvá. Pitoco latia, latia de tanta alegria, sem nada pode cismá. Eu tacava pelote, fazendo virar cambote um pobre cará cará.

De repente, fiquei com a arma fria, gritei pra Virgem Maria, que podia me sarvá, uma urutu das dourada, num galho dipindurada tava pronta pra sartá. Pitoco ficou arrepiado, ficou com os óio vidrado e deu um sarto mortar, se combateu com a serpete, a repicou tuda de dente, mas não pode se sarvá. Pitoco morreu latindo, os seus óinho tão lindo foi fechando devagar, parecia inté que ria da minha patifaria em não poder lhe sarvá. E nesse mundo, tão louco, onde os amigo são pouco, dispois que morreu Pitoco, nunca mais achei outro iguar."

É BRASIL QUE NÃO ACABA MAIS

Boldrin passou também pela Band, pelo SBT e TV Gazeta, mantendo na TV Cultura, onde estava desde 2005, seu maior acervo. A emissora distribuiu o seguinte texto sobre o ator:

"A Fundação Padre Anchieta lamenta profundamente a morte do ator, cantor, compositor e apresentador da TV Cultura Rolando Boldrin, na tarde desta quarta-feira (9/11), aos 86 anos. O velório será realizado na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Av. Pedro Álvares Cabral, 201 - Moema). O horário será informado em breve.

Rolando Boldrin teve enorme contribuição na história da TV Cultura. Com o "Sr. Brasil", o qual apresentou por 17 anos, "tirou o Brasil da gaveta" e fez coro com os artistas mais representativos de todas as regiões do país. Em seu programa, o cenário privilegiava os artesãos brasileiros e era circundado por imagens dos artistas que fizeram a nossa história, escrita, falada e cantada, e que já viajaram, muitos deles "fora do combinado", conforme costumava dizer Rolando.

Figura emblemática da cultura popular brasileira, Boldrin, o sétimo filho de uma família de 12 irmãos, nascido em 22 de outubro de 1936, foi o único "encarregado" de cantar e contar a nossa terra em verso e prosa desde muito cedo. Saído do interior de São Paulo, da cidade de São Joaquim da Barra, o caboclinho virou ator de filmes premiados e de novelas acompanhadas no Brasil inteiro e até no exterior, e tornou-se compositor, cantor, apresentador e, claro, grande contador de causos.

O "caipira" que cantou e contou o Brasil como poucos teve uma vasta carreira na teledramaturgia brasileira. Boldrin foi um homem de inúmeros talentos e muita personalidade, mas dizia que era fundamentalmente um ator: "esse tem sido meu trabalho a vida inteira; radioator, ator de novela, de teatro, de cinema, um ator que canta, declama poesias e conta histórias", falava.

Como ator, Rolando atuou em mais de 30 novelas, como "O Direito de Nascer"; "As Pupilas do Senhor Reitor"; "Os Deuses Estão Mortos"; "Quero Viver"; "Mulheres de Areia"; "Os Inocentes"; "A Viagem"; "O Profeta"; "Roda de Fogo"; "Cara a Cara"; "Cavalo Amarelo" e "Os Imigrantes".

Na televisão, ainda apresentou os programas "Som Brasil" na Rede Globo, "Empório Brasileiro" na TV Bandeirantes e "Empório Brasil" no SBT. Na TV Cultura, esteve à frente do "Sr. Brasil" desde 2005.

Seja como ator, apresentador, cantor ou contador de causos, Rolando Boldrin deixará uma lacuna na cultura brasileira e uma imensa saudade entre os milhões de fãs que conquistou em mais de 60 anos de carreira na TV.

A TV Cultura agradece pela honra de ter contado com o brilhantismo de Boldrin em sua programação. E manifesta os mais sinceros sentimentos aos familiares e amigos deste artista gigante que jamais será esquecido."

Abaixo, fica a dica de uma edição do Roda Viva com Boldrin, alguém cujo repertório era raro e vale a pena conhecer.

Zapping - Cristina Padiglione

Cristina Padiglione é jornalista e escreve sobre televisão. Cobre a área desde 1991, quando a TV paga ainda engatinhava. Passou pelas Redações dos jornais Folha da Tarde (1992-1995), Jornal da Tarde (1995-1997), Folha (1997-1999) e O Estado de S. Paulo (2000-2016). Também assina o blog Telepadi (telepadi.folha.com.br).

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