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Zapping - Cristina Padiglione
Descrição de chapéu machismo feminicídio

Diretora pede pausa no set para discutir cena de estupro coletivo

Susanna Lira fala sobre 'Não Foi Minha Culpa', série sobre casos de feminicídio, que estreia na Star+

A atriz Fernanda Nobre em cena
A atriz Fernanda Nobre na série 'Não Foi Minha Culpa', da Star+ (Disney), que aborda situações diversas de femincídio - Divulgação
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São Paulo

A maratona diária de cenas previstas para cumprir as metas orçamentárias de um set pede planejamento cirúrgico de tempo, a fim de evitar atrasos. Mas a diretora Susanna Lira se deu ao luxo de interromper por três horas o expediente em um dos dias de gravação da série "Não Foi Minha Culpa" para debater como deveria ser realizada uma delicada sequência que mostraria um estupro coletivo.

Disponível na Star+, plataforma de conteúdo adulto da Disney a partir desta quarta-feira (10), a série soma dez episódios com diferentes tipos de situação, todas pautadas por casos reais de feminicídio.

"Eu parei o set por algumas horas, o que é um absurdo. Depois, a gente entregou todas as cenas que tinha para fazer naquele dia. Mas precisava parar para refletir sobre aquilo que a gente estava fazendo", conta Susanna à coluna. A diretora fez questão de manter apenas as mulheres no local para planejar a gravação. E deu voz a todas elas na concepção da cena.

Uma das profissionais pediu para se retirar do local, pois havia sofrido algo semelhante na vida real. Susanna lhe telefonou e a alcançou já em casa. Pediu que ela voltasse para o set e que ela a ajudasse na sequência. "Ela falou: ‘Não vou ficar nessa cena'. E eu falei: 'Se a gente não curar esse processo aqui, a gente pode causar uma rejeição do público [a essa situação]. Se você não fizer disso um lugar de cura pra você, para que a gente está fazendo esta cena?' E essa pessoa foi uma das que dirigiu a cena comigo. Foi a melhor coisa que eu fiz nessa série."

Transfobia na ficção
Episódio aborda transfobia na série 'Não Foi Minha Culpa', da Star+/Disney - Divulgação

A diretora comemora: "Foi lindo esse dia, porque a gente entregou todas as cenas gravadas, mas com esse processo de cura feito. Era importante ressignificar aquilo para aquela mulher, naquele momento. E ela falava: ‘Agora ele faz isso’, ‘Não mostra o rosto dela’... Eu aprendi com ela e eu pude fazer da maneira mais visceral possível, para traduzir os sentimentos de uma mulher naquela situação, mas foi preciso parar o set por três horas."

OLHAR FEMININO

"Não Foi Minha Culpa" desembarca na tela bem na semana em que se comemora o 16º aniversário da Lei Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto de 2006.

Encomenda do grupo Disney à roteirista Juliana Rosenthal, a série traz uma equipe majoritariamente feminina atrás das câmeras, o que também permitiu que os homens envolvidos no trabalho pudessem aprender com elas, em vez de ditar as normas, como normalmente acontece.

"Que diferença faz a gente fazer audiovisual sendo mulheres?", questiona Susanna. "Que olhar feminino é esse? Talvez não exista um olhar feminino para o audiovisual, talvez exista um processo de fazer diferente, é isso que está me interessando no momento."

Susanna fez questão de dividir os créditos de direção com um homem, Márcio Schoenardie. "Eu achava importante ter um homem ali para me ajudar a ter esse olhar para esse masculino, para a gente não fazer uma série onde a gente não tivesse esse contrabalançado. Trabalho muito bem com homens e mulheres, mas a gente tem oito mulheres na equipe de fotografia, a arte basicamente era de mulheres, e isso ajudou muito a acolher os atores e atrizes nos momentos mais delicados."

OLHAR FEMININO

A diretora conta que recebeu elogios de executivos da Disney sobre as cenas de sexo, todas feitas por mulheres. "Pelo histórico que o audiovisual traz, pelo fato de as mulheres se sentirem sempre muito assediadas e abusadas nas cenas de sexo, eu pedia licença para os meus amigos e companheiros. Só tinha homens legais nessa equipe, mas eu falava: ‘gente, deixa só com a gente’. E a gente filmou as posições que a gente queria, e foi ótimo."

Durante as reuniões de roteiro, os homens presentes às vezes perguntavam às mulheres: "Mas isso acontece mesmo?" "Acontece muito, e você não sabe porque não é mulher".

"A Disney, que nos ensinou sobre princesas e Cinderelas durante tanto tempo, se abriu para nós, escancarou as portas. Eles nos disseram: 'Façam do jeito de vocês', e foi muito legal. A autonomia que a gente teve pra fazer tudo desde os roteiros foi enorme, e eles trabalharam ativamente com a gente."

DIVERSIDADE

Protagonista do episódio que mostra o estupro coletivo, Aline Dias conta que sua personagem sai do Piauí e vai até São Paulo. "É uma história muito complicada de se contar. Eu não consigo definir o que eu senti, não consigo definir o que essas mulheres sentem, só sei que eu não consegui silenciar mais", diz.

"Sou uma mulher negra", continua Aline, conhecedora da vulnerabilidade extra que vitima seus pares.

"Na hora veio um instinto mesmo, foi muito forte pra mim. Acho que pra mim e para toda a equipe foi um dia muito emocionante."

A pluralidade de cores, idade e tipos físicos pautou a escolha do elenco e dos enredos desde a criação no papel, assinada por Juliana, em parceria com Michele Ferreira. Além de Aline, os episódios são estrelados por grandes atrizes, como Bianca Comparato, Lorena Comparato, Fernanda Nobre, Karol Lannes, Ana Paula Secco, Gabrielle Joie, Sandra Corveloni, Virginia Rosa, Luana Xavier, Suzy Lopes, Simone Iliescu e Dandara Mariana.

Também entram em cena Armando Babaioff, Malu Mader, Vinicius de Oliveira, Daniel Blanco, Elisa Lucinda, Cyria Coentro, Dalton Vigh, César Melo, Enrico Cardoso, João Baldasserini, Felipe Kannenberg, Jennifer Nascimento, Marat Descartes, Marcelo Airoldi, Robson Nunes e Rômulo Braga.

"A gente tinha oportunidade de contar dez histórias e começou pensando nesses perfis diferentes de personagens para abarcar a maior diversidade possível", fala Juliana. "Como eu digo, a violência contra a mulher é tão democrática quanto o carnaval", alegoria que abre e fecha todos os episódios, como elo de ligação entre uma história e outra.

"A gente queria muito atingir muita gente e evitar ao máximo que as pessoas que assistissem dissessem: ‘Ah, comigo isso não acontece, só acontece com a pessoa tal’. Então acho que todo mundo que assistir em algum momento vai se identificar", completa a roteirista, que fez ainda questão de driblar estereótipos.

A série é fruto de produções similares da Disney no México e na Colômbia. "Quando a gente definiu quem eram essas pessoas, a gente fazia tabelas de cor, de raça, de religião, de tipo de violência – violência psicológica, violência física, violência patrimonial, matricídio, quem mata?"

FEMINICÍDIO NA ROTINA

Entre os episódios, há também um caso de homicídio de transexual e um enredo que sublinha violências aparentemente banais do dia a dia, com desfecho nocivo, protagonizado por Fernanda Nobre e Daniel Blanco.

"Nosso episódio foi sobre um abuso muito comum entre casais heterossexuais", conta Fernanda, que se viu perfeitamente em um universo semelhante ao seu na vida real. "A série já fala de abusos sutis e aqueles nem tão sutis, em várias classes sociais, e no nosso episódio foi um abuso sutil de uma classe social que eu faço parte, a identificação foi muito imediata", fala.

Ao lado de Daniel Blanco, ela vive uma atriz que abre mão da carreira para realizar o sonho de engravidar, sendo sufocada pelo ego do parceiro, também ator, que lança frases muito comuns nessas situações, como justificar abuso emocional e agressão verbal com alegações como "Olha o que você me obriga a fazer" ou "Só faço isso por amor".

"Pode parecer um pouco arrogante eu dizer que minha vivência já foi uma preparação para esse trabalho, mas é uma humildade para o nosso momento histórico feminino. Eu acho que eu já eatava pronta para fazer porque eu já estava completamente entregue a esse assunto, a essa pesquisa e a essa questão", conta a atriz, que afirma ter tido "vários gatilhos de cenas" que já viveu, mas tinha esquecido.

"São coisas que eu tinha esquecido que eu tinha escutado, de frases que eu naturalizei e nem sabia que eu tinha naturalizado, e quando me deparei com elas no roteiro, eu disse: 'Meu Deus, eu já ouvi isso tantas vezes'."

Parceiro de Fernanda em cena, Daniel agradece a oportunidade de aprender todos os dias com a discussão do machismo e misoginia estrutural citada por Fernanda. "Eu já vinha me questionando sobre machismo estrutural, reconhecendo isso na terapia, na vida, com as minhas amigas, já perdi amizades por amigos que não concordavam comigo", diz o ator, que torce para que o recado chegue aos homens.

"Quero que os homens assistam e percebam situações que não percebiam", conclui.

Fernanda, Daniel e Aline, que conversaram com a coluna, também comemoram os efeitos de um set predominantemente feminino, como nunca antes haviam visto. "A equipe ser toda feminina faz toda diferença", endossa o ator.

Fernanda reforça: "Essa é a função da arte, trazer novas visões de mundo. Que isso toque os outros, que a gente possa trazer essa reflexão para os homens e também para as mulheres. A gente já sabe que só de nascer mulher, a gente já nasce com medo, mas a gente naturaliza muitos abusos."

Zapping - Cristina Padiglione

Cristina Padiglione é jornalista e escreve sobre televisão. Cobre a área desde 1991, quando a TV paga ainda engatinhava. Passou pelas Redações dos jornais Folha da Tarde (1992-1995), Jornal da Tarde (1995-1997), Folha (1997-1999) e O Estado de S. Paulo (2000-2016). Também assina o blog Telepadi (telepadi.folha.com.br).

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