Adaptação de 'Cidade em Chamas' transfere ação dos anos 1970 para o pós-11 de Setembro
Série dos responsáveis por 'The O.C.' e 'Gossip Girl' estreia em 12 de maio na Apple TV+
No topo do InterContinental Barclay Hotel, em Manhattan, Nova York, no terceiro trimestre do ano passado, um pequeno grupo de pessoas olhava com admiração para um céu matutino sem nada de especial, em meio aos arranha-céus da parte central de Manhattan. "Meu Deus, olha só", disse uma delas. "Nunca vi coisa parecida, em toda minha vida", outra acrescentou.
Para os atores mais jovens que ajudaram a recriar a noite de 14 de agosto de 2003, o que eles estavam "vendo" exigia um salto de imaginação. Mas graças à magia da pós-produção, os telespectadores da nova série "Cidade em Chamas", que estreia em 12 de maio na Apple TV+, poderão contemplar algo que para os nova-iorquinos foi completamente extraordinário, durante o apagão que atingiu toda a região naquela noite: um céu noturno salpicado de estrelas.
O apagão de 2003 teve uma energia nitidamente comunitária, em contraste com o de 1977, que tem papel proeminente no romance "Cidade em Chamas", de Garth Risk Hallberg, que serve de base à série da Apple. Mas para os criadores da série, Stephanie Savage e Josh Schwartz, o apagão de 2003 representava um dos diversos paralelos históricos que os levaram a confiar que poderiam transpor o mistério de 900 páginas de Hallberg, sobre punk rock, amor jovem e anarquia, de um período de intensa mudança para outro: a era posterior ao 11 de Setembro. Tal como no final dos anos 70, o futuro da cidade de Nova York parecia incerto, e a sua cena de rock underground era vital.
Era a época dos Strokes e do Friendster, dos Yeah Yeahs e do início dos polêmicos esforços de mudança do zoneamento pelo prefeito Michael Bloomberg. Isso também aconteceu... 20 anos atrás, o que faz com que a história pareça pronta para o ciclo da nostalgia.
"Romantizo totalmente o início dos anos 2000", disse Chase Sui Wonders, 26, que interpreta a jovem "femme fatale" Samantha, uma caloura da Universidade de Nova York que tira fotografias analógicas, publica um fanzine e é obcecada por uma banda fictícia da cidade, chamada Ex Post Facto. "Foi muito divertido jogar com a falta de tecnologia do período, quando bastava ligar para o telefone de casa de alguém e dizer: ‘Me encontre no Tompkins Square Park ao meio-dia e, se você não puder, tudo bem: procuro outra pessoa para me fazer companhia’."
Esse período, crucialmente, também passou praticamente inexplorado pelas séries roteirizadas modernas. O desafio que Savage e Schwartz enfrentavam, com isso, era duplo: seria possível fazer justiça ao espírito caótico do romance e dos anos 70 se a linha do tempo fosse deslocada em um quarto de século? E haveria como fazer justiça ao espírito de 2003 de uma forma que ressoasse hoje?
Wyatt Oleff, que interpreta o personagem principal masculino, Charlie, parece pensar que sim. Garoto ingênuo de Long Island, cujo pai morreu nos atentados do 11 de Setembro, Charlie está começado a descobrir a cidade e a seguir sua paixão, Samantha, de uma loja de discos para outra e de um casa de música para outra —e, enfim, ao submundo do crime. Tal como Charlie, Oleff é um recém-chegado a Nova York. O ator nasceu em 2003.
"Essa sensação de transição de uma era para a outra, creio, é muito fascinante para mim, porque sinto que estou em uma fase de transição na minha vida", disse o ator. "E sinto que a série encapsula esse sentimento de crescimento e mudança."
O ano de 2003 é a estrela-guia para Savage e Schwartz, mas não porque eles o tenham passado saltando de festa em festa em lofts do Brooklyn. Foi naquele ano que estreou "The O.C.", uma série de sucesso criada por Schwartz para a rede Fox —Savage foi produtora executiva e roteirista da série, e os dois mais tarde criariam juntos "Gossip Girl".
Embora "The O.C." se passasse no sul da Califórnia, sua trilha sonora ajudou a levar a música independente da época —incluindo artistas de Nova York como os Walkmen, Interpol e LCD Soundsystem— a um público mais amplo.
Quando começaram a debater ideias de séries com a Apple, "Cidade em Chamas" fazia parte de uma longa lista de "projetos de sonho", disse Savage. O livro tinha atraído enorme atenção já antes do seu lançamento, em 2015, e teve direitos de adaptação cinematográfica adquiridos por Scott Rudin antes mesmo de o autor assinar contrato para o livro com uma editora. Savage e Schwartz ficaram surpresos ao saber que os direitos de adaptação para as telas estavam de novo disponíveis.
Ainda assim, não tinham certeza de que o mundo precisasse de mais um série passada em Nova York na década de 1970, disse Schwartz, "e além disso, os anos 70, hoje, para a audiência... já faz 50 anos, e tudo começa a ficar meio abstrato". O ano de 2003 era menos abstrato. Mas acarretava outros riscos.
"Estávamos nervosos ao conversar com Garth", disse Savage, ciente de que a mudança "era bastante substancial". Hallberg gostou da ideia. Segundo Savage, ele "falou muito sobre o fato ter usado os anos 70 como paralelo para a época em que vivia e em que o livro foi escrito". Ela e Schwartz esperam que a sua série possa se relacionar de forma semelhante com os dias de hoje.
"Aquele período dos anos 70 foi uma época em que as pessoas se questionavam se Nova York sobreviveria como cidade", disse Schwartz, acrescentando que no período posterior aos ataques terroristas do 11 de Setembro, quando Hallberg começou a escrever o romance, "as mesmas questões estavam sendo propostas". Outro eco sombrio era que grande parte de Manhattan estava fechada devido à pandemia quando a produção da série começou. A Covid-19 também despertou "muitos receios sobre a sobrevivência da cidade de Nova York", ele disse.
"The O.C." ensinou a Savage e Schwartz o valor de escolher a música certa –e isso parece ter sido ainda mais importante em "Cidade em Chamas". Cenas acontecem em casas noturnas sombrias nas quais Karen O (mostrada por meio de imagens de arquivo) uiva no palco. Um dos personagens principais, William, interpretado por Nico Tortorella, é o antigo vocalista do Ex Post Facto, que se envolve em um tiroteio que pode afetar sua família, de quem ele está afastado e que vive no Upper East Side (sua irmã, Regan, é interpretada por Jemima Kirke). A trilha sonora é matadora. A música está sempre presente.
"Na música pós-11 de Setembro, acho que em geral experimentamos algo semelhante ao que temos agora, na música pós-pandemia", disse Tortorella, 34. "Há uma luta pela vida, no som, uma liberdade."
Dar vida ao grupo Ex Post Facto —e à sua encarnação seguinte, Ex Nihilo– se tornou um projeto musical paralelo. Para isso, o supervisor musical, Jonathan Leahy, reuniu um pequeno grupo de compositores para criar canções originais e gravar demos, e os produtores musicais Abe Seiferth e Jason Hill transformaram as composições em gravações completas e em performances de palco, na série (Hill também responde pela partitura do programa). Tortorella e Max Milner, que interpreta o substituto de William na banda, responderam pelos vocais. A Apple planeja lançar as canções online e em vinil, em uma edição limitada.
"É uma tarefa impossível fazer com que a música tenha o som daquela era e lugar específicos e, ao mesmo tempo, não fazer com que pareçamos estar roubando alguém, de alguma maneira", disse Leahy. "Mas foi o que tentamos fazer."
Para quem vivia em Nova York em 2003, as lembranças ficaram um pouco empoeiradas (para referência: foi o ano em que me mudei para a cidade, aos 24 anos). Mas certos momentos permanecem nítidos —lacrados, talvez, pelas tensões do momento. Quando as luzes se apagaram, não houve pilhagem e incêndios generalizados, como em 77. Mas, como Hallberg apontou em uma conversa por telefone, houve "uma pontada de pânico muito forte", e todo mundo parecia estar pensando que "meu Deus, será que vai acontecer de novo? Será um ataque terrorista?".
O que veio a seguir, ele disse, foi uma "longa cauda de doce alívio". Grande parte da cidade se transformou em uma espécie de carnaval de rua, enquanto as bodegas e mercearias batalhavam para esvaziar seus freezers de cerveja e carne.
Algumas coisas não mudaram muito desde 2003, o que a série destaca por meio de sua atenção a questões como classe, raça e o aburguesamento de algumas áreas da cidade. "Esses são temas que, honestamente, devem persistir ao longo de toda a história da humanidade", disse Xavier Clyde, 29, que interpreta o namorado de William, Mercer, um jovem negro que é suspeito, falsamente, de um ataque a tiros. "Independentemente do período de tempo em que essas coisas nos são apresentadas, elas vão sempre repercutir."
Mas se a visão que domina "Cidade em Chamas" é um pouco cor-de-rosa, isso é uma tradição nova-iorquina. Em 2003, a garotada cool se queixava de que a música nova da cidade era muito derivativa –alguém já ouviu falar dos Stooges?!— e de como Manhattan parecia domesticada, em comparação com os dias felizes do CBGB e dos assaltos constantes. E a visão atual parece não ser exceção.
"Se podemos concordar em uma coisa é que a tecnologia faz mal, na maior parte do tempo", disse Sui Wonders, rindo, enquanto refletia sobre o seu próprio tempo em comparação com 2003. Para ela, uma das partes mais inspiradoras do série foi a forma pela qual ela parecia se perguntar "de que maneira as pessoas se comunicavam antes da era digital?".
"O que quer que aconteça, caos ou conexão", ela prosseguiu, "pelo menos as pessoas estão se conectando".
Assim, talvez a garotada esteja bem. No mínimo, Oleff —aos 19 anos, o membro mais jovem do elenco principal— parece sensato demais para se meter no tipo de problemas em que seu personagem se mete.
"Há sempre um ciclo", ele disse, sobre a cidade para a qual se mudou há pouco tempo. "As pessoas vão chegar e causar mudança. E isso é também o que estou aprendendo sobre a beleza de Nova York: há uma tradição aqui, mas também há tanto espaço para a experimentação que ela se torna uma cidade completamente diferente a cada poucos anos."
"E isso, para mim, é o que Nova York é."
Tradução de Paulo Migliacci
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