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Cinema e Séries
Descrição de chapéu The New York Times Televisão

Baseados em histórias reais, dramas sobre mulheres que matam proliferam no streaming

'Candy' e 'Amor e Morte' são exemplos recentes da crescente safra de tramas sobre assassinas

Cena da série 'Amor e Morte' - Divulgação
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Alexis Soloski
The New York Times

Em 13 de junho de 1980, Candy Montgomery, dona de casa e mãe de dois filhos em um subúrbio do norte do Texas, deixou os dois filhos e uma amiga deles na igreja, foi apanhá-los para as aulas de natação e depois os levou para assistir a "Star Wars: O Império Contra-Ataca". Em algum momento do final da manhã, matou Betty Gore, a mãe da amiga de seus filhos, com 41 machadadas, na área de serviço da casa de Gore.

Esse assassinato e a eventual absolvição de Montgomery (ela invocou legítima defesa, e o júri acreditou) inspiraram duas séries, mais de 40 anos depois: "Candy", disponível no Brasil pelo Star+, e "Amor e Morte", que estreou nesta semana na HBO Max, com novos episódios se seguindo a cada semana. As séries se somam a uma recente safra de dramas baseados em histórias reais sobre mulheres que matam ou que organizam assassinatos, como "The Act" (Hulu, 2019), "The Girl from Plainville" (Hulu, 2022), "The Landscapers" (HBO, 2021) e "The Thing About Pam" (NBC, 2022).

As mulheres que se assemelham às protagonistas dessas séries, brancas e, em sua maioria, de classe média, já são arquétipos conhecidos no plano mitológico do crime verdadeiro: mães sempre prontas a dizer alguma coisa gentil e oferecer comida, filhas com sorrisos que iluminam uma sala, mulheres que parecem ter a vida toda pela frente. Mas, na maioria das narrativas de crimes verdadeiros, essas mães, filhas e esposas são as vítimas. Nesses casos, elas são as assassinas. Isso confere às séries, que normalmente atraem uma audiência maioritariamente feminina, tanto atrativos quanto horrores únicos: os assassinos? São exatamente como nós.

"É assustador!", disse Jessica Biel, que interpretou o papel principal em "Candy", em uma conversa telefônica recente. Biel falou dos serviços de Montgomery à sua comunidade, de seu cuidado com os filhos. Se uma mulher como Montgomery pode cometer um homicídio, talvez qualquer mulher possa. "Se ela pode fazer isso, acho que eu também sou capaz de fazê-lo", disse a atriz. "Todo mundo é. É isso que é aterrador... e fascinante."

Nos Estados Unidos, as mulheres homicidas são comparativamente raras. E, apesar das narrativas que as histórias de crime verdadeiro preferem, as vítimas femininas também o são. Cinco anos atrás, o FBI (a polícia federal americana) calculou que mais de 88% dos autores de homicídios eram homens e que as mulheres constituíam pouco mais de 21% das vítimas de homicídio. E, no entanto, as pesquisas indicam que mulheres procuram com mais frequência do que os homens os meios de comunicação que apresentam histórias sobre crime verdadeiro, especialmente crimes violentos —livros, podcasts, dramas e documentários.

Há duas teorias principais para explicar essa obsessão feminina, que alguns pesquisadores definem como paradoxo do "medo do crime", já que as mulheres parecem mais propensas a se interessar por aquilo que tem menor probabilidade de afetá-las.

A primeira, disse Marissa Harrison, professora de psicologia na Universidade Estadual da Pensilvânia, em Harrisburg, e autora de "Just as Deadly: The Psychology of Female Serial Killers" (tão mortais quanto: a psicologia das assassinas seriais, em livre tradução), envolve a procura de emoção e a curiosidade mórbida, o mesmo impulso que nos leva a desacelerar a fim de olhar para a cena de um acidente de automóvel.

Harrison também esboçou uma segunda teoria, segundo a qual as mulheres consomem histórias de crimes verdadeiros por uma questão de vigilância protetora. "Evoluímos ao longo do tempo para prestar atenção às coisas que podem nos prejudicar", disse.

Desse ponto de vista, as mulheres veem os crimes reais como educativos, observando, lendo e ouvindo para aprender o que devem evitar. Uma consumidora desse tipo de história pode dizer a si mesma que nunca teria aceitado aquela carona. Nunca teria ido àquele encontro. Nunca teria aberto a porta.

Essa forma de vigilância protetora muitas vezes chega perto de culpar a vítima. E, no entanto, histórias como a de Montgomery oferecem muito menos lições, o que é assustador. Porque quem não abriria a porta a uma amiga da igreja que aparece para apanhar um maiô? Ainda assim, narrativas como "Candy" e "Amor e Morte" oferecem suas próprias lições —lições que tipicamente reforçam as diferença de gênero, substanciando crenças comuns sobre o binário de gênero.

"Essas narrativas confirmam crenças profundas sobre as emoções das mulheres, sobre a incapacidade de as mulheres controlarem as suas emoções, sobre o fato de as mulheres serem movidas por emoções", disse Sarah Rebecca Kessler, professora de inglês na Universidade do Sul da Califórnia, que se descreve como obcecada por crimes reais. O caso de Montgomery as confirma melhor do que a maioria das histórias: um modelo de feminilidade, ela cantava no coro da igreja e era mais conhecida por sua famosa lasanha até o momento em que matou a amiga, aparentemente por impulso.

O fato de os homens matarem não é uma surpresa. Há alguns anos, Marc Cherry criou uma série roteirizada chamada "Por Que as Mulheres Matam", que ficou em cartaz por duas temporadas na CBS All Access e Paramount+ (no Brasil, a Globoplay disponibilizou os episódios). É quase impossível imaginar uma inversão de gênero e uma série intitulada "Por Que os Homens Matam".

Os dramas sobre Jeffrey Dahmer, Ted Bundy ou Richard Ramirez jamais se preocupam muito com os motivos de tudo aquilo, e procuram estabelecer a monstruosidade em vez de buscar uma causa. No entanto, quando se trata de mulheres, o motivo é primordial, e os espectadores são convidados a prestar muita atenção às circunstâncias, aos comportamentos e à psicologia da assassina.

Quando, em lugar de cuidar e amar, ela prejudica, magoa e assassina, o que se ouve sempre é "por quê? Por quê? Por quê?", disse Harrison.

O motivo atraiu o interesse de David Kelley, roteirista de "Amor e Morte", para o caso de Montgomery. "É aí que reside o mistério", ele disse. "Como é que uma pessoa que tinha grandes aspirações em seu coração, incluindo o amor e a comunidade, pôde agir de uma forma que desmente esses princípios no seu âmago mais profundo?" (Os motivos eram menos opacos em seu sucesso anterior para a HBO, "Big Little Lies", sobre mulheres assassinas fictícias).

Tanto "Candy" quanto "Amor e Morte" resolvem o mistério aceitando e reiterando a versão de Montgomery sobre os acontecimentos. No tribunal, ela testemunhou que Gore a tinha atacado primeiro, zangada por conta de um caso entre Montgomery e Alan, o marido de Gore. Um psicoterapeuta ofereceu provas, obtidas em um interrogatório de Montgomery sob hipnose, sobre um trauma que ela teria sofrido na infância. A teoria da defesa sustentava que, quando Gore empurrou Montgomery durante o ataque, ela recordou esse trauma, o que a conduziu a um estado dissociativo.

Mas o motivo não é a totalidade da história. Qualquer drama de crime verdadeiro digno do sangue que derrama precisa mostrar o como. Já que tanto "Candy" quanto "Amor e Morte" são identificados como dramas de prestígio, ainda que baseados em fatos, e não como dramas de crimes verdadeiro, os dois programas enfrentam o dilema de decidir quanta violência mostrar, e do ponto de vista de quem.

"Batalhamos todos os dias para saber se devíamos ou não filmar a morte", disse Robin Veith, uma das criadoras de "Candy". Ambos os programas acabaram por encenar a morte de uma forma que também se enquadra depoimento de Montgomery no julgamento, em cenas que perturbaram até mesmo as pessoas que as produziram. Homicídio, mesmo o imaginado, tem seu preço.

Biel descreveu que se refugiou na decoração de época do set e nos figurinos de "Candy", particularmente as perucas (ela não se parece em nada com Montgomery, mas na tela a semelhança é impressionante). Foi só ao mergulhar totalmente na personagem, dos dedos dos pés ao último cacho de cabelo, que ela se permitiu sentir o que Montgomery presumivelmente sentiu, e fazer o que ela fez.

"Assim que coloquei a peruca, não me reconheci", disse. "Podia me comportar de uma forma pela qual não era responsável."

Elizabeth Olsen, a estrela de "Amor e Morte", não tinha tantas perucas em que confiar. Na tela, ela se parece menos com a Montgomery verdadeira. A sua Candy —uma mistura de voz suave e ângulos duros, sonho e determinação— é possivelmente mais impressionista. Na primeira vez que filmou a sequência do homicídio, a atriz se apanhou ofegando, mareada de adrenalina.

"Não gosto nada de violência", ela disse em uma conversa por vídeo. "Foi uma sensação horrível. Não houve parte alguma de mim que se divertisse, que tenha imaginado que talvez fosse divertido fazer aquilo. Foi realmente desagradável."

Lesli Linka Glatter, a veterana diretora que filmou "Amor e Morte", chorou depois de dizer "corta". "Alguma vez chorei no set? Nunca", ela disse. "Essa foi provavelmente uma das coisas mais perturbadoras que já filmei, porque era real, porque era muito próxima e pessoal. Eram apenas duas mulheres, duas donas de casa, naquela sala."

Duas donas de casa entraram naquela sala, mas apenas Montgomery saiu. E, embora a maioria de nós queira dizer a si próprio que os assassinos são diferentes do resto das pessoas, uma mulher como Montgomery —tão agradável, tão feminina– nos impede de evitar alguma identificação.

"Talvez o mais assustador seja o fato de os monstros poderem estar dentro de todos nós, mesmo das pessoas que amamos e em quem confiamos", afirma Kelley.

Tanto em "Candy" quanto em "Amor e Morte", Candy, com as suas modas ridículas do final dos anos 70, parece muito normal, presa dos mesmos prazeres e exasperações que muitos de nós sentimos. Mas a normalidade, ao que parece, não é uma proteção contra o pior que um ser humano pode fazer.

Ao ver a maioria dos dramas de crimes verdadeiro, muitas mulheres guardam um pensamento arrepiante: "Isso poderia acontecer comigo". "Candy" e "Amor e Morte" inspiram pensamentos que são indiscutivelmente piores: "Eu poderia fazer o mesmo, eu poderia querer o mesmo".

Tradução de Paulo Migliacci

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