Falabella expõe 'intestinos' do teatro musical e nega fazer 'Glee brasileiro'
Criador não teve liberação de todas as canções que queria; veja qual ficou fora
Criador não teve liberação de todas as canções que queria; veja qual ficou fora
Miguel Falabella, 65, estava assistindo à apresentação de teatro escolar da filha de um casal de amigos que mora nos Estados Unidos. Em vez de uma peça, os jovens haviam decidido fazer um apanhado de canções tiradas de musicais da Broadway. "Fiquei tão emocionado de ver a garotada com 17 anos cantando aquilo", relata. "Pensei: 'Nossa, como é importante manter esse lastro de civilização'."
Foi quando veio o primeiro estalo de fazer algo parecido no Brasil, o que agora se concretiza com a série "O Coro: Sucesso Aqui Vou Eu", que estreia nesta quarta-feira (28) no Disney+. "É meio uma cápsula do tempo", compara. "Quando chegar o meteoro, se Deus quiser, tudo isso estará preservado e as pessoas vão dizer: 'Nossa, que coisa linda! Como eles produziam coisas de qualidade, né? Que povo talentoso!'."
Às ideias que estavam fervilhando em sua cabeça, ele acrescentou a própria experiência. "Sempre tive vontade de falar dos intestinos do teatro musical", comenta. "Já dirigi 12 espetáculos, então é um processo que eu conheço bem. Sempre me instigou essa angústia do ator que está na minha frente e tem três minutos para me convencer a contratá-lo, para mostrar que ele é o cara, né?"
Apesar de ter no elenco atores com quem já trabalhou, como Karin Hils ("Pé na Cova", Globo) e Daniel Rangel ("Eu, a Vó e a Boi", Globoplay), ele diz que o processo de seleção para a produção foi similar ao que é visto na frente das câmeras. "Claro que fiz audições", afirma.
Assim como na série, pelo menos um ator acabou não sendo selecionado de cara, caso de Lucas Wickhaus, que vive o personagem Jorge Novaes. "Ele fez o teste, mas eu não o selecionei, ele não ficou entre os finalistas", revela Falabella, lembrando que, às vezes, o ator não está em seu melhor dia.
"Acabou que não gostei de nenhum dos que estavam audicionando para o personagem", conta. "Cheguei em casa, liguei a TV e tinha um comercial com o Lucas, mas eu não sabia que era ele. Liguei na mesma hora e falei para a produtora de elenco que queria um rapaz como aquele. Falei: 'Vai atrás desse rapaz, pergunta se ele canta'. Aí ela falou: 'Miguel, ele testou para você'."
O criador então pediu para o rapaz voltar e gravar um novo teste. E, dessa vez, foi aprovado. "São essas coisas impressionantes que acontecem", diz. Para ele, os papéis têm destino certo, ainda que muitas vezes demorem a encontrar seu caminho. "O que é do homem o bicho não come", diz.
Na trama, Jorge é um dos que tentam uma vaga na Companhia Estável de Teatro Musical, criada pelo empresário Renato Milva, interpretado de forma metalinguística pelo próprio Falabella. Além dele, diversos jovens de origens variadas tentam realizar o sonho de viver de arte por meio dessa oportunidade. "Eu misturei um pouco das histórias que eu ouvi, mas é tudo ficcional e novelesco", avisa o autor.
Apesar de a série ter recebido o apelido de "Glee brasileiro" quase que imediatamente após seu anúncio, o criador diz que essa foi apenas uma das referências. "Eu assisti todos os episódios, mas não tem nada a ver", afirma. "O 'Glee' é numa escola, é outra coisa. Tem outra pegada, outro olhar, outra estética..."
Falabella conta que não se incomoda com a comparação com a série do americano Ryan Murphy, sucesso entre 2009 e 2015, principalmente por também ser sobre personagens jovens cantando. "Se quer achar que é, pode ser, não tem problema", diz. "Mas, se for assim, então todas as séries vão se parecer, não tem como fugir disso."
Para ele, o principal diferencial de "O Coro" é investir nas situações que só poderiam ocorrer aqui. "É uma série brasileira, sobre a nossa realidade e sobre o nosso dia a dia, que é completamente diferente do deles [dos americanos]", adianta. "Eu sou muito brasileiro na minha dramaturgia, na maneira como eu olho para as coisas."
A questão de ser uma obra que não vai ficar restrita ao Brasil, já que o Disney+ poderá levá-la a outros territórios, não o fez abrir mão de nada. "A gente não vê coisa americana e adora? Não vê coisa inglesa, coreana e gosta? Quando é bom, é bom. O ser humano, na sua essência, é parecido. A busca pela felicidade é o bem mais bem distribuído do planeta. Todos nós buscamos. E os meus personagens todos têm esse sonho em comum. Os caminhos que eles vão trilhar para chegar lá é que são diferentes."
Isso também vai se manifestar na trilha sonora, escolhida a dedo entre clássicos da MPB e sucessos incontestáveis de várias épocas, com nova roupagem. "Todos são pretextos para a gente resguardar o que é importante em termos de civilização, em termos de música popular brasileira", afirma.
No entanto, introduzir na trama canções populares de Lupicínio Rodrigues, Chico Buarque, Gilberto Gil, Raul Seixas, Angela Ro Ro, Titãs e Paralamas do Sucesso, entre outros, pode ser mais complicado do que se imagina. "A maioria das músicas não é feita para teatro, dá trabalho encaixá-las na dramaturgia", explica. "Mas é muito emocionante ver essa molecada cantando."
Falabella confessa que não conseguiu autorização para usar todas as músicas que queria na série. Um exemplo é "Alegria, Alegria", de Caetano Veloso. "Os direitos eram muito caros", lamenta. "Eu tinha colocado originalmente, mas não consegui manter por questões financeiras mesmo."
Contudo, ele diz que esse não foi um grande problema. "Nós temos uma MPB muito robusta, né?", avalia, contando que apenas substituiu o que não teve autorização para usar. "Nós somos um povo de grandes harmonias, embora estranhamente de grandes desarmonias em outras áreas, né?"
Em tempos de música pelo streaming ou mesmo pelo YouTube ou pelo TikTok, o autor diz não temer que o repertório tenha pouco apelo para o público mais jovem. "Acho que o ser humano é capaz de identificar uma bela harmonia", afirma. "E uma bela música toca o nosso coração seja ela qual for."
Se, para alguns, as músicas da série serão redescobertas, para outros, serão uma descoberta mesmo. "Eu tive gente que gravou 'Disparada' que nunca tinha ouvido", lembra. "E eles falavam: 'Ai, que música linda'. Porque é linda mesmo. Eu acho que a harmonia sobrevive a tudo."
"Essas linhas melódicas que teceram a trama das nossas existências estão em algum lugar no DNA das pessoas", continua. "Não é à toa que, durante anos, a música brasileira foi a segunda mais tocada no mundo."
O autor compara esse trabalho ao que realizou em "Sexo e as Negas", série exibida pela Globo em 2014 e que foi apresentada como uma espécie de "Sex and the City" do subúrbio carioca. Na época, a série foi acusada de racismo nas redes sociais, embora fosse uma das raras obras para a TV aberta protagonizada por quatro mulheres pretas e com elenco majoritariamente negro.
"Era uma brincadeira que foi mal compreendida pelo título", avalia Falabella. "Foi um mau título num mau momento. Mas aconteceu, e é uma pena, porque a série era linda e muito à frente de seu tempo. Eu não tive a inteligência de perceber que aquele título poderia ser usado de uma maneira errada."
Passado o trauma —ele diz que ficou anos sem rever a produção e só recentemente voltou a assistir ao material no Globoplay—, ele diz que, na nova série, segue com sua escrita cheia de personagens ousados e situações inusitadas. Considerada conservadora em relação a outras concorrentes, a Disney não colocou empecilho a qualquer temática proposta, segundo ele.
"Primeiro não é uma série infantojuvenil, é Young Adults [jovens adultos]", explica. "Mas essa coisa conservadora você tem como dribla. A gente não precisa ir para a cama para mostrar que está transando. A gente se olha no olho e, quando você é bom ator, tudo já foi dito. Fica mais interessante até."
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