Dira Paes diz que filme 'Veneza' propõe resgate do direito de sonhar
Longa de Miguel Falabella traz a atriz espanhola Carmen Maura
Longa de Miguel Falabella traz a atriz espanhola Carmen Maura
Miguel Falabella, 64, não lembra ao certo quando entrou em contato pela primeira vez com o texto do autor argentino Jorge Accame, 65, que serviu de base para seu novo filme, "Veneza". Mas lembra-se de ter se encantado pela história, que chega às telas sob sua direção nesta quinta-feira (17).
"Trabalhei muito na Argentina desde 'A Partilha' (1990), emendei uma peça atrás da outra", diz Falabella em resposta ao F5 durante bate-papo com jornalistas. "Não lembro em que momento alguém me falou de 'Veneza'. A peça era montada de um jeito muito simples."
"O autor é um professor de grego avesso a falar, a dar entrevistas, acho que mora na Patagônia", recorda. "Quando o procurei, ele disse: 'Eu fiz esse exercício, não sou exatamente um autor, mas se você está tão encantando, vá em frente, eu compartilho do seu sonho'."
Em 2003, Falabella estreou uma montagem brasileira com Laura Cardoso, Arlette Salles e Tuca Andrada no elenco. Desde então, ele já imaginava que a história poderia render um belo filme, algo que ele concretiza quase 20 anos depois. "Eu sabia que eu ia realizar um dia", confessa o diretor, que não filmava desde "Polaroides Urbanas" (2008).
Na trama, Gringa é a dona de um decadente bordel em uma cidade sem grandes atrativos, que poderia ser em qualquer lugar. Cega, ela tem o sonho de viajar para Veneza, onde um velho amor que ela rejeitou a estaria esperando. E as pessoas ao seu redor fazem de tudo para que ela consiga, de algum modo, alcançar seu objetivo.
A personagem é interpretada pela atriz espanhola Carmen Maura, 75, conhecida por ser uma das musas de Pedro Almodóvar, 71. Inicialmente, o papel foi oferecido à argentina Norma Aleandro, 85, mas ela recusou por causa da idade avançada e sugeriu a colega.
Falabella conta que mandou o roteiro para ela sem botar muita fé, mas a resposta foi positiva. "Para mim, foi um projeto muito diferente de tudo o que já fiz, é muito especial", declarou a atriz em vídeo exibido para os jornalistas. "Sempre que venho a terras latino-americanas, sou surpreendida. E esta foi uma surpresa belíssima."
A vinda da atriz, no entanto, fez com que a produção fosse transferida para o Uruguai, já que ela não tinha vacina contra a febre amarela e não poderia gravar no Brasil. "Carmen tinha um tempo muito apertado para fazer as cenas dela", conta o diretor.
Mesmo assim, para o elenco foi uma grande alegria trabalhar com a atriz. "O que mais me impressionou foi a rapidez com que se conectou conosco", diz Dira Paes, 51, que interpreta a prostituta Rita. "Não levou um segundo."
"Ela sabia que tinha que partir dela a abertura para podermos nos aproximar, porque ela é uma grande atriz", afirma a brasileira. "Lembro que ela me deu um abraço e falou assim: 'Quero ouvir a sua voz, quero me acostumar com a sua voz'. São esses detalhes que constroem um ator ou uma atriz."
Dira Paes lembra ainda que a colega teve dificuldade para chegar ao 'portunhol' que apresenta em cena. "O português não foi uma facilidade para ela. Ela fez um trabalho quase cotidiano, teve um tempo dedicado."
No filme, Rita funciona como os olhos de Gringa. É ela a mais empenhada em tentar realizar o sonho de levá-la a Veneza. "É tudo muito especial nessa construção", avalia a atriz. "A Rita quando fala da Gringa reconhece todos os defeitos, mas, sobretudo, a generosidade de alguém que a abrigou no momento de maior necessidade."
"Ela faz do sonho de Gringa o sonho dela", afirma Paes. "O filme tem mutias entrelinhas e fala de coisas que estamos discutindo hoje, sobre a nossa permissão de sonhar. A nossa consciência está voltada para a defesa dos direitos básicos, o sonho parece que fica longe."
Eduardo Moscovis, 53, se emocionou ao falar sobre o filme, no qual interpreta Tonho, um rapaz cuja mãe trabalhou no bordel e que viveu toda a vida por lá, fazendo pequenas tarefas em troca de sexo gratuito. Ele diz lembrar de ter assistido ao espetáculo no teatro. "E não tenho essa memória boa", brinca o ator.
"O desejo de Gringa é o mesmo que o nosso", compara Moscovis ao falar sobre o sonho da personagem e o dos artistas de poder realizar o próprio trabalho. "Estamos sendo tão massacrado. É tão doído", lamenta o ator, em referência à forma como a cultura vêm sendo tratada no país nos últimos anos. "Eu me sinto muito fragilizado, muito mexido."
"A gente que é artista tem uma compreensão da dificuldade que temos para sobreviver e realizar as nossas obras e crenças artísticas", afirma o ator. "A gente não aproveitou Veneza como turista, a gente trabalhou lá. Fizemos todas as cenas em três dias. Não tem dinheiro sobrando, não roubamos dinheiro de ninguém... A gente é muito honrado!"
Ele lembra que uma cultura pujante é benéfica para todos. "A gente faz pela gente, mas também pelo público, para levar esse sonho, de esperança, de beleza, para que consigamos refletir e se olhar", avalia.
Falabella concorda e diz que o filme chega em boa hora justamente por trazer questões como essa. "Acho bom que as pessoas acreditem na sua capacidade de sonho, na sua capacidade criativa, porque isso que vai nos salvar", afirma. "Nós temos que criar ilhas de sensibilidade, pois são fundamentais para nós."
"Eu sou o único aqui que peguei a barra pesada, fazíamos ensaio para a censura, tínhamos espetáculos cortados, e sobrevivemos a tudo isso", diz Falabella ao lembrar os anos de ditadura militar(1964-1985) no país. "Não receba o ódio. Um presente que você não aceita fica com a pessoa. Isto também passará."
Versão anterior desse texto grafou incorretamente o nome da atriz argentina Norma Aleandro.
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