Tony Goes

'Um Lugar ao Sol' estreia com trama manjada, direção segura e ótimas atuações

Personagens com falhas morais são a especialidade da autora Lícia Manzo

Christian (Cauã Reymond) e Ravi (Juan Paiva) em 'Um Lugar ao Sol' - Globo

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Lícia Manzo precisou de quase 30 anos como roteirista da Globo para chegar ao horário mais nobre da emissora. Contratada inicialmente como redatora de humor, ela colaborou em várias séries e novelas até chegar ao posto de autora titular de "A Vida da Gente", exibida em 2011 na faixa das 18 horas.

A trama foi bem de audiência e um sucesso ainda maior entre a crítica, que se encantou com a ausência de vilões explícitos. Quatro anos depois, Manzo também recebeu aplausos por outro folhetim das 18 horas, "Sete Vidas".

Dois êxitos consecutivos a gabaritaram para voos mais altos. Manzo chegou a escrever todos os capítulos de "Jogo da Memória", que deveria ter estreado na faixa das 23h em 2017. A novela, que girava em torno de um caso de incesto, acabou sendo cancelada pela Globo.



A autora então submeteu uma nova sinopse para as 18 horas. Silvio de Abreu, então diretor de dramaturgia diária da emissora, achou que "Um Lugar ao Sol" combinaria melhor com a faixa das 21 horas. A estreia foi marcada para maio de 2020. Aí veio a pandemia.

"Um Lugar ao Sol" finalmente entrou no ar nesta segunda (8), dois anos depois de entrar em produção. A novela nasce carregando dois grandes fardos. É a primeira atração 100% inédita de sua faixa desde que "Amor de Mãe" começou em novembro de 2019. Também estreia com todos os seus 107 capítulos já gravados. Eventuais mudanças serão caríssimas e dificílimas de se fazer.

A julgar pelo primeiro episódio, esse percurso acidentado valeu a pena. O conflito central se apresentou com clareza. Dois irmãos gêmeos são separados depois que a mãe morre no parto, no interior de Goiás. Um deles é adotado por um casal rico e levado para o Rio de Janeiro. O outro fica com o pai paupérrimo e acaba parando num orfanato, de onde sai ao completar 18 anos.

O plot dos gêmeos que não se conhecem é recorrente na teledramaturgia. A própria Globo já o reciclou diversas vezes, da novela "Baila Comigo" (1981) à série cômica "Segunda Dama" (2014).

Mas Lícia Manzo não está preocupada com isto. Em entrevista a Cristina Padiglione, a autora revelou que o que a interessa é a maneira de contar a história, não sua originalidade.

Cauã Reymond interpreta os irmãos Christian e Christopher –este, rebatizado de Renato pela nova família. É digno de elogios o trabalho da caracterização e da computação gráfica para fazer o ator, de 41 anos, aparentar apenas 18.

Também cabe ressaltar que Reymond está muito bem, diferenciando os dois personagens pelo sotaque, pelas atitudes e pela expressão corporal. Vai ser interessante quando ele tiver que fundir ambos em um só, quando um dos gêmeos se passar pelo outro.

Christian descobre que tem um irmão e parte para o Rio. Renato descobre que foi adotado quando o pai, à morte num leito de hospital, lhe confessa que é estéril. Decide ir a Goiás. A dupla se desencontra.

Christian vai trabalhar como ambulante nas cercanias do estádio carioca do Engenhão, na esperança de cruzar com o irmão na saída de algum jogo. Sete anos depois, é manobrista no estacionamento do aeroporto e mora numa favela. Numa festa, conhece Lara, sua futura namorada, vivida por Andréia Horta.

O primeiro capítulo não introduziu nenhuma das várias tramas paralelas anunciadas, que vão discutir temas como a menopausa e a inclusão de pessoas com síndrome de Down na sociedade. Focou exclusivamente a trama dos gêmeos, com muita ênfase em Christian. Afinal, ele se tornará o protagonista depois da também já anunciada morte de Renato (inclusive num sonho do próprio).

Dois integrantes do elenco merecem destaque. Ana Beatriz Nogueira, escalada pelo imaginativo departamento de casting da Globo como sua enésima ricaça meio antipática, conseguiu dar novas nuances a um tipo que já fez inúmeras vezes.

E o novato Juan Paiva, que brilhou em "Malhação: Viva a Diferença" e no filme "M8 - Quando a Morte Ajuda a Vida", rouba todas as cenas em que aparece. Ele faz Ravi, colega de orfanato mais novo que Christian, que vem ao Rio atrás da mulher amada.

Essa mulher é Lara, que Christian toma para si no momento em que a conhece, mesmo ciente da paixão do amigo. Não foi por maldade, mas também foi um aperitivo do caráter não totalmente íntegro do rapaz.

Eis a melhor a qualidade de Lícia Manzo: criar personagens com falhas morais, que nem por isso são malvados de carteirinha. Gente normal, crível, de carne e osso.

Com direção segura, sem pirotecnias porém nada careta, "Um Lugar ao Sol" também marca o début de Maurício Farias, veterano do humor na Globo, na direção artística de novelas.

Este primeiro capítulo foi um começo auspicioso. Mesmo com a saudade que estávamos de imagens inéditas na faixa das 21 horas –e, talvez por isto mesmo, propensos a gostar de qualquer coisa–, "Um Lugar ao Sol" impressionou. Deu vontade de ver mais, que é o maior elogio que se pode fazer a uma estreia de novela.