Luciano Huck, Angélica e o espetáculo do sofrimento alheio
Ninguém aguenta mais o assunto do pouso forçado envolvendo o casal de apresentadores Angélica e Luciano Huck.
O assunto ocupou tanto espaço nos noticiários quanto um acidente de Boeing internacional com vítimas fatais. Aliás, a mídia tratou do assunto como se os dois tivessem morrido e a própria TV Globo explorou ao máximo o quase-acidente.
Felizmente, a família se salvou de uma tragédia, mas a história está cercada de equívocos. A começar pela divulgação de foto de Angélica em uma maca da Santa Casa de Campo Grande, onde foram prestados os primeiros socorros.
A própria TV Globo ignorou os limites da ética e fez sensacionalismo ao mostrar na programação e no site G1 uma imagem ilegal de sua funcionária machucada sendo atendida. Há quem defenda que celebridades não podem reclamar da falta de privacidade, mas divulgar a intimidade de um atendimento médico não é do interesse nacional, diz respeito apenas à envolvida.
O público gosta, sim, de acompanhar tragédias e, por isso, os programas de violência têm tanta audiência. Na psicanálise, acredita-se que, ao consumir fenômenos mórbidos e/ou catastróficos, o sujeito pacifica seus impulsos destrutivos reprimidos inconscientemente. Assim, quanto mais pensamentos negativos, medo, raiva e tristeza se acumula internamente, mais o sujeito é atraído por histórias de sofrimento.
No passado, as tragédias do teatro tinham este papel social de canalizar os impulsos agressivos da sociedade e minimizar comportamentos violentos. Hoje a imprensa se encarrega disso, explorando o sofrimento alheio para gerar no espectador sentimento de alívio.
Certamente o herói da história, o piloto Osmar Frattini, ainda será bastante explorado. Vítima do pior ferimento físico dentre todos da aeronave —um corte de sete pontos na cabeça—, ele não teve o mesmo atendimento diferenciado no SUS. "Ele foi levado para um posto de saúde e não para a Santa Casa, como todo o mundo", disse sua mulher.
Não conseguiram ambulância para resgatá-lo, foi de carro mesmo, sangrando, e o último a ser levado. Esperou horas para o atendimento, e só conseguiu ser levado à Santa Casa por pedido do governador do Estado do Mato Grosso do Sul e de Luciano.
Nem o piloto, nem o copiloto e nem as duas babás seguiram para a "revisão médica" em São Paulo. A verdade é que, aparentemente, ninguém mais precisava disso, já estavam de alta pelos profissionais da neurologia, cardiologia, clínica geral e pediatria do SUS. Mas um atendimento no hospital Albert Einstein de São Paulo (a família mora no Rio, só para constar) parece ter trazido uma segurança extra ao casal e, involuntariamente, aumentou o tempo de exposição no circo midiático.
Todos saem ganhando, até quem não tem nada a ver com o assunto. Acusada de ter praticado magia negra contra Angélica no passado, a apresentadora Mara Maravilha trouxe o assunto à tona após se justificar nas redes sociais: "Nunca desejei o mal de ninguém", avisou.
Outro apresentador que oportunamente cavou espaço com a história foi Otávio Mesquita. Alegando que seu médico havia cancelado a consulta no mesmo hospital onde estava a família, foi até lá para falar com a imprensa, digo, visitar os enfermos.
Durante os dez minutos de terror que antecederam o pouso forçado, há relatos de muitos gritos, de pânico e sensação de morte iminente. Joaquim, o filho mais velho, gritava que não queria morrer. Angélica perguntou ao marido se eles iriam pousar e ele respondeu: "Não, a gente vai cair".
Luciano contou que, logo após o acidente, Angélica chorava muito, retorcia-se e não conseguia andar, estava muito nervosa. Em entrevista, ela disse: "Passou na minha cabeça que a gente ia se machucar muito ou morrer".
Na exclusiva para o "Jornal Nacional" (Globo), dentro do hospital, o repórter José Roberto Burnier interpretou o sorriso e bom humor do casal para as câmeras e se apressou a dar prognósticos: "Os dois estão bem. Não vão ter sequela nenhuma (...) e também não sofrem nenhum risco de nada grave". Certamente ignora as terríveis sequelas psíquicas a que todos ali estão vulneráveis, adultos e crianças.
O episódio não foi apenas um milagre, como bem destacou Luciano, mas uma lição de humildade e sorte. Todos os 84 leitos da UTI do hospital em que foram atendidos estavam ocupados e não havia condições técnicas para atender pacientes graves que dependessem de respiração artificial, caso ocorresse uma tragédia.
De fato o assunto é algo de interesse nacional. O SUS agoniza e escapou por muito pouco de uma exposição vexaminosa de proporções catastróficas.
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