'Glamorous' é a primeira série criada especialmente para garotos gays afeminados
Nova sitcom da Netflix tem muitas qualidades, mas pouco veneno nos diálogos
Os algoritmos permitem que as plataformas de streaming conheçam a fundo os gostos de seus espectadores, e façam a eles sugestões cada vez mais certeiras. De uns tempos para cá, esse conhecimento acumulado também é usado para desenvolver programas para públicos bastante específicos.
É o caso de "Bridgerton", que foi desenhada para satisfazer às fantasias e anseios de meninas adolescentes. Até a trilha sonora, composta por hits contemporâneos regravados com arranjos para quartetos de cordas, garantem que essas garotas jamais precisem sair de suas zonas de conforto.
Recém-chegada à Netflix, "Glamorous" está sendo vendida como uma mistura de "Ugly Betty" com "Emily in Paris", e não há exagero nisso. As duas séries já tinham muitos pontos em comum, que agora são repaginados nesta nova sitcom. Mas bastou assistir aos três primeiros episódios para perceber que se trata, na verdade, do primeiro programa de TV criado especificamente para a "bichinha quaquá".
Perdão pelo termo antiquado e preconceituoso, mas acho muito mais preciso do que não-binárie e outras expressões em voga. O protagonista Marco Mejía é um jovem adulto desmunhecadíssimo, de voz fina e gestual afetado. Usa maquiagem todos os dias e anda sempre de salto alto. Seu intérprete atende pelo nome de Miss Benny, que na vida real se identifica como uma mulher trans.
Marco se esforça para virar um influenciador do mundo do "beauty care", mas suas lives têm pouca audiência. Para se sustentar, trabalha como vendedor de cosméticos numa loja de departamentos.
É lá que, um belo dia, ele esbarra em um de seus ídolos: Madolyn Adison, fundadora e proprietária da Glamorous, uma famosa marca de produtos de beleza. Ela se encanta com Marco e o convida para ser seu segundo assistente. O rapaz então penetra num universo cintilante, onde há muito brilho nos lábios e algumas facadas nas costas.
Assim como os de "Bridgerton", os roteiros de "Glamorous" são escritos para materializar todos os desejos de seu público-alvo. Marco é desajeitado, mas nunca se dá realmente mal. É ferino, embora suas alfinetadas sejam quase desprovidas de maldade. Além do mais, faz um sucesso estrondoso com dois gays bem diferentes entre si: um discreto colega de trabalho e um "bofe" musculoso, que não dá a menor pinta.
A série aí repete um clichê presente em praticamente qualquer obra audiovisual que tenha uma jovem mulher como protagonista: a mocinha é sempre disputada por dois rapazes, e demora um pouco para decidir qual deles merece seu coração.
Kim Cattrall, a Samantha de "Sex and the City", está divertida como Madolyn, embora sua personagem não seja icônica feito Miranda Priestly, a megera encarnada por Meryl Streep em "O Diabo Veste Prada". Gentil e compreensiva, Madolyn não irá gerar memes nem se tornar fantasia de carnaval.
Todos os personagens masculinos são homossexuais. Além dos três já citados, também há Chad (Zane Philips), filho de Madolyn e diretor comercial da Glamorous. Arrogante e algo incompetente, ele é quase que o antagonista de Marco.
Também há uma moça lésbica e outra bissexual. Tamanha diversidade em nenhum momento parece forçada, e "Glamorous" marca pontos ao mostrar tantas pessoas da comunidade LGBTQIA+ de maneira positiva, em paz com suas próprias sexualidades. Os problemas que elas enfrentam são iguais aos de todo mundo: falta de dinheiro, ansiedade nos relacionamentos, desafios profissionais.
Mas a série também parece ter sido gerada em laboratório, ou até mesmo escrita pelo ChatGPT, com a intenção expressa de não pisar no calo de ninguém. A sensação é a de que os roteiristas controlaram exageradamente as línguas dos personagens, com medo do cancelamento.
Tudo isso faz com que "Glamorous" seja um entretenimento leve, porém desnecessariamente inofensivo. Faltaram aquelas famosas duas gotas de veneno a mais.
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