Charlotte e Cleópatra, rainhas negras da Netflix, misturam fato e ficção
Série derivada de Bridgerton é divertida, mas docudrama sobre Egito deixa a desejar
Alguns retratos de Charlotte de Mecklenburg-Strelitz, rainha da Grã-Bretanha e da Irlanda entre 1744 e 1818, mostram uma mulher com traços que podem tranquilamente ser interpretados como os de uma pessoa birracial. A pele é clara, mas os lábios são carnudos e o nariz, ligeiramente largo.
Charlotte era alemã e sua raça jamais foi debatida enquanto ela esteve viva. Foi só no século 20 que alguns historiadores levantaram a hipótese de ela ter antepassados negros. Um estudioso encontrou na árvore genealógica da rainha uma moura, Madragana, amante do rei Afonso 3º de Portugal.
Acontece que Madragana viveu no século 13, 500 anos antes de Charlotte, e é bastante improvável que se parecesse com sua descendente. Além disso, os mouros —como eram chamados os árabes que ocuparam a Península Ibérica durante 700 anos— não tinham a pele muito escura nem os traços dos negros da África subsaariana.
Mesmo contra todas as evidências históricas, a série "Bridgerton", da Netflix, mostra a rainha Charlotte como uma mulher negra e a sociedade britânica do começo do século 19 povoada por gente de todas as etnias. Não se trata apenas de "colour blind casting", a prática de escalar o melhor ator possível para um papel sem olhar para sua cor da pele. Os negros de "Bridgerton" são mesmo negros.
"Rainha Charlotte", a minissérie que precede os acontecimentos de "Bridgerton" e que estreou na semana passada na Netflix, assume sem rodeios que é uma fantasia. O primeiro episódio abre com um letreiro avisando que o programa "não é uma aula de história –é ficção inspirada por fatos. Todas as liberdades tomadas pela autora são bastante intencionais. Divirta-se".
A autora é a roteirista e showrunner Shonda Rhimes, responsável por séries de sucesso como "Grey’s Anatomy" e "How to Get Away with a Murder" e talvez a mais poderosa mulher negra do showbiz americano. "Bridgerton", que ela adaptou para a tela a partir dos romances de Julia Quinn, quer não só entreter o espectador mas também posicionar-se politicamente, ao imaginar uma Grã-Bretanha multirracial que não existia no começo do século 19.
O resultado é que tanto "Bridgerton" como "Rainha Charlotte" são séries divertidas, com uma dose de acuidade histórica e outra da mais deslavada imaginação. A nova minissérie foca a doença mental do rei George 3°, marido de Charlotte, então tratada como "porfíria" —hoje, provavelmente, ele seria diagnosticado como portador de distúrbio bipolar. A esse drama verdadeiro contrapõem-se absurdas perucas azuis e "O Grande Experimento", a tentativa imaginária de integrar os ricaços de origem africana à aristocracia britânica.
"Bridgerton" faz questão de afirmar que não pretende ensinar história para ninguém. O mesmo não pode ser dito de outra minissérie da Netflix, "Rainha Cleópatra", que chegou nesta quarta (10) à plataforma. Produzido pela atriz Jada Pinkett Smith, o programa tem um objetivo declarado: convencer o espectador de que a última rainha egípcia era negra.
Mas os próprios depoimentos dos historiadores convidados refutam essa noção. Todos insistem que não podemos determinar com certeza a cor da pele de Cleópatra, pois não sabemos quem foi sua mãe. Só a professora Shelley P. Haley, uma das mais respeitadas estudiosas da Antiguidade, diz sem meias palavras que Cleópatra era negra –porque a avó dela assim dizia. Convenhamos, só a opinião dessa senhora não basta.
O fato indiscutível é que a rainha pertencia à dinastia ptolemaica, de origem macedônia –e, portanto, branca. Mas é bastante possível que, ao longo dos 300 anos em que reinaram no Egito, os ptolemaicos tenham se misturado com representantes da nobreza local.
Isso remete a outra discussão: o antigo Egito seria um país negro? Alguns intelectuais negros dos Estados Unidos defendem que a população da terra dos faraós era parecida com a da África Ocidental, mas vestígios arqueológicos e representações artísticas sugerem outra coisa. Os antigos egípcios tinham, em sua maioria, pele parda e cabelos e olhos negros. Não eram, absolutamente, europeus de pele clara, como Hollywood mostrou em inúmeros filmes.
Os depoimentos dos historiadores são a melhor coisa de "Rainha Cleópatra". O tom é quase didático em excesso, dirigido aos leigos no assunto. Mas a vida de Cleópatra é abordada por vários ângulos, e os mitos sobre ela que ainda sobrevivem são refutados.
Onde a série derrapa feio é na reconstituição histórica. Os atores são ruins; os diálogos, sofríveis; e os penteados remetem mais à moda atual do que ao Egito de 2.000 anos atrás. Cleópatra é mostrada até mesmo treinando luta de espadas, algo que não é corroborado por nenhum historiador. A cena, na verdade, é uma concessão à sensibilidade moderna, que acha que uma mulher tem mais valor se ela guerrear feito um homem. Cleópatra jamais precisou, ela mesma, pegar em armas para alcançar seus objetivos.
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