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Tony Goes

Nany People, 'a mulher que se autofez', celebra o Dia Internacional da Mulher

Em entrevista exclusiva, atriz conta como foi seu processo de transição

A atriz Nany People
A atriz Nany People - Divulgação
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São Paulo

Nany People Cunha Santos. É assim que aparece nos documentos o nome da mais famosa atriz transexual brasileira. Depois de anos de luta e inúmeros constrangimentos, ela conseguiu que seu nome verdadeiro –aquele que traduz a mulher que de fato é– constasse na carteira de identidade, no passaporte, no visto para os Estados Unidos, no DRT, no convênio médico e na escritura de seu apartamento.

"É libertador", afirma ela. "Tira aquele ar de zombaria, aquele sorriso de Mona Lisa que o sujeito da alfândega fazia quando eu aparecia vestida de mulher e apresentava um passaporte de homem".

Nany se descreve como "a mulher que se autofez". Foi um processo que começou na infância, assim que ela percebeu que gostava mais de brincar com meninas no recreio. Bastava o pequeno Jorge ficar sozinho em casa, na cidade mineira de Poços de Caldas, para ele invadir o quarto da mãe e experimentar vestidos e sapatos dela.

Há pouco mais de 20 anos, quando nos conhecemos nos bastidores de um Teleton, Nany ainda se definia como drag queen. Circulava como rapaz em raríssimas ocasiões, meio escondida dos amigos. Mas comparecia "montada" (vestida de mulher) a qualquer compromisso profissional –até mesmo a programas de rádio, onde sua imagem não aparecia.

Mas ela nega que Nany People seja uma persona, que ela só encarnaria para trabalhar. "Desde que virei Nany, sou Nany 24 horas por dia, em qualquer situação. Ninguém mais me chama de Jorge".

Hoje Nany diz que seu processo de transição, na verdade, se completou no momento em que se reconheceu como mulher, logo no início da idade adulta. Naquela época ainda nem circulavam termos como "cis" e "trans", mas ela já sabia quem era.

"A primeira vez que eu me montei para valer foi no Carnaval de 1983. Eu tinha uns 17 anos e acabado de ver a Rogéria (uma das mais famosas travestis brasileiras de todos os tempos) num show em Ribeirão Preto, e pensei: 'é assim que eu quero viver'. Peguei um vestido com um grupo de teatro de que eu participava, improvisei uma produção e saí na rua de 'Tributo a Lucrécia Bórgia'. Foi um arraso!"

O nome Nany People surgiu pouco depois. "Naquela época havia uma modelo lindíssima chamada Nani Venâncio, que fez muitas capas de Playboy. Mineira como eu. Então pensei, por que não? E o sobrenome surgiu porque eu sempre falei com todo mundo. Diziam que eu era do povo. Povo, people, pronto!"

Nany veio para São Paulo ainda muita jovem, e arranjou emprego numa loja de vestidos de noiva da tradicional Rua São Caetano. Para uma de suas primeiras escapadas noturnas na cidade, pegou "emprestada" a trança de um arranjo de noiva, enrolou com um turbante e foi brilhar na Corinto, uma enorme boate gay que existia ao lado do Shopping Ibirapuera.

Logo começaram os convites para shows. Até mesmo no Café Piu Piu, um lugar frequentado por casais héteros, onde Nany se apresentou cantando rock. Ela poderia ter passado o resto de sua carreira em boates e casas noturnas, mas queria mais. Queria fazer teatro e ser uma atriz de verdade.

Antes de se consagrar nos palcos, Nany People conseguiu ficar conhecida do grande público. Foi presença fixa nos programas de Hebe Camargo, no SBT, e Xuxa Meneghel, na Record. Participou de inúmeros humorísticos, até ser chamada pela Globo, em 2019, para interpretar o Marcos Paulo na novela "O Sétimo Guardião", de Aguinaldo Silva.

Por incrível que pareça, este foi seu último personagem transexual. Desde então, Nany deu vida a inúmeras mulheres cisgênero –inclusive uma bem reacionária e homofóbica, na peça "Caros Ouvintes" de Otávio Martins. Todos seus papéis recentes, seja no cinema, no teatro ou em humorísticos como o "Vai que Cola", do Multishow, são de mulheres cis.

O que me leva a perguntar sua opinião sobre o movimento que algumas ativistas trans fizeram para impedir que atores cis interpretassem personagens transexuais. O ator Luís Lobianco chegou a receber ameaças de morte por causa do monólogo "Gisberta", baseado no caso real de uma travesti brasileira morta em Lisboa. Lobianco sequer encarnava a personagem em cena.

"Minha mãe costumava dizer que a ignorância é atrevida", responde Nany. "E se a atriz trans não estiver à altura do papel? O mundo anda tão chato, tão polarizado... Agora a Patrícia Poeta não pode se vestir de japonesa, porque é apropriação cultural. E o que não é? Se você vestir uma calça jeans, vai estar se apropriando da cultura americana".

Lembro que, no Carnaval que passou, travestis reclamaram dos homens que se vestem de mulher. Segunda elas, "travesti não é fantasia". Nany não esconde a impaciência. "Esses caras não estão se fantasiando de travestis, estão se fantasiando de mulheres. E fica hediondo, porque são uns caras musculosos, bigodudos, de sainha e peruquinha. Eles estão tirando sarro de si mesmos, de mais ninguém. Fica engraçado, e o humor precisa de ruptura".

"Estão tentando colocar o mundo em caixinhas, mas elas são muito pequenas para mim. Meu compartimento tem que ser muito maior, sabe? Estou com 57 anos de idade, e faz 47 que subi num palco pela primeira vez. Construí minha carreira sem empresários, sem gestores, só com bons produtores. Hoje meu telefone não para de tocar".

Ela roda o Brasil com dois shows, "Tsunany" e "Nany É Pop". Acabou de gravar uma canção com o padre Fábio de Mello e se prepara para participar da nova sitcom de Rodrigo Sant’Anna na Netflix. Antes disso, se apresenta no show "Nany (en) Canta" no Teatro Gazeta, em São Paulo, no dia 23 de março, ao lado de uma de suas "ídalas": Fafá de Belém. E ainda sonha com seu próprio talk show. "Eu consigo fazer perguntas íntimas, sem ofender, do tipo "você cospe ou engole"? Sempre na base do humor".

E a vida amorosa, como vai? "Sexo é química, amor é matemática. E eu odeio fazer conta! Não estou a fim de casar, só de acasalar. Casada, mesmo, só com o meu ofício, o teatro. O resto é pegação. E eu só pego novinho. Se a Madonna pegou Jesus, eu vou nos querubins. Quem gosta de pau velho é orquídea, eu sou uma trepadeira!".

Essa entrevista foi feita no dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Horas depois, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) fez um discurso transfóbico na Câmara, um dos pontos mais baixos da política brasileira de todos os tempos.

Queria só ver como esse moleque irresponsável reagiria à exuberância de Nany, que também merece ser homenageada no Dia da Mulher. "Afinal, eu sou mulher e sou bonita! B-U-C-*-*-*, bonita", diz ela, às gargalhadas.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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