Tony Goes

Barracos sempre foram comuns entre a elite brasileira, mas antigamente não havia celular

Folclore do high society tem episódios mais escabrosos que do Gero e do Leblon

Barraco no Leblon
Barraco no Leblon - Reprodução
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Num momento em que incêndios devastam o Pantanal e o número de brasileiros mortos pelo coronavírus se aproxima de 150 mil, dois assuntos dominaram as redes sociais no fim de semana que passou: o barraco do Leblon e o barraco do Gero, como foram apelidados pela imprensa e passarão à posteridade.

Ambos episódios ocorreram na noite de sexta (25), em dois dos endereços mais caros do país: a rua Dias Ferreira, no bairro carioca do Leblon, e o restaurante Gero, na região paulistana dos Jardins. Não vou descrevê-los em minúcias. Todo mundo já viu e reviu os vídeos, deu risada, torceu por um lado ou por outro e tirou uma conclusão óbvia: a elite brasileira dos dias de hoje não presta.

Esse mau comportamento seria uma consequência direta do bolsonarismo, que teria autorizado os boçais a exporem seus preconceitos sem medo de retaliação. Ninguém mais é grosseiro, racista ou homofóbico: quem assim se revela está apenas sendo autêntico e exercendo seu sagrado direito à livre expressão.

Pois eu já acho o contrário. O bolsonarismo é que é uma consequência direta da má educação, em todos os sentidos, que sempre permeou a alta sociedade brasileira. Não toda ela, é verdade —mas uma parte considerável, como provam diversos episódios que eu presenciei ou ouvir falar, de fonte segura, ao longo da minha vida.

Eu tenho lugar de fala. Meu pai foi presidente de um dos clubes mais exclusivos do Rio de Janeiro, onde eu passei toda a infância e a adolescência. O lendário processo de admissão de novos sócios distribuía as temidas bolas pretas a torto e a direito, barrando a entrada de qualquer um que não se encaixasse num suposto ideal de perfeição.

E nem por isto o lugar era um convento de freiras. Barracos homéricos aconteciam no bar, no restaurante, na piscina, na sala de jogos. Certa vez, um sujeito descobriu, durante uma partida de tênis, que sua mulher o traía. Saiu dando raquetada na adúltera, na frente de babás com crianças e senhoras que tomavam o chá da tarde.

Sem falar na socialite que cortou com uma tesoura todos os caríssimos ternos do amante que a repudiou. Ou de uma outra dama, que retalhou as telas da coleção de arte do ex-marido. Ou da cadeira que voou por uma janela do Copacabana Palace, mergulhando na piscina do hotel.

Pouco disso vinha a público, porque vigorava uma espécie de omertà —o código de honra dos mafiosos, que pune com a morte os dedos-duros. Também não havia colunistas sociais no quadro de sócios (um dos mais importantes tentou entrar para o clube durante anos a fio, e foi barrado em todas as tentativas). Mas, principalmente, não havia telefones celulares.

Muito se fala dos sistemas de reconhecimento facial que a China vem implantando para controlar seus cidadãos ainda mais cerradamente. Mas o fato é que um controle social fluido, informal e até bastante democrático já existe no mundo inteiro. Toda vez que alguém se afasta da norma mais ou menos estabelecida, ou se expõe ao ridículo ostentando privilégios que não existem, lá está um celular registrando a cena e repassando-a às redes sociais.

Nos Estados Unidos, são tantos os episódios de estupidez protagonizados por mulheres brancas de classe média alta que elas até já têm um apelido: são as “Karens”, sempre dispostas a reclamar com o gerente porque tem um negro passando perto delas.

Aqui no Brasil, tampouco faltam exemplos. Houve o casal que repudiou ser tratado como “cidadão”, na mesma rua Dias de Ferreira onde ocorreu a batalha do biquíni. Houve o desembargador de Santos que se recusou a usar máscara e humilhou os guardas que o abordaram, mesmo sabendo que estava sendo filmado.

A reação dos delinquentes é sempre a mesma. Uma vez expostos na internet, saem dizendo que as imagens foram “tiradas de contexto” e que são cidadãos de bem, diplomados, amantes da ordem e de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Neste exato momento, está rolando uma guerra de versões entre as moças que se engalfinharam no barraco carioca. Antigamente, os envolvidos num escândalo sumiam de circulação, ou tentavam silenciar os jornais que eventualmente vazassem alguma notícia. Hoje, as redes sociais proporcionam uma plataforma para que cada um divulgue seu próprio vídeo de explicações. Se colar, colou. E em breve acontecerá outro barraco, que irá nos monopolizar a atenção.

Toda essa balbúrdia tem um lado positivo. O Brasil contempla a si mesmo nesses flagras e, por trás da galhofa, há uma certa dose de reflexão. Eis o país que somos: queremos mesmo ser assim?

O pior é que talvez queiramos.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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