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Tony Goes

Série 'Em Nome de Deus' revela um lado escabroso do caráter brasileiro

Produzido pela equipe do Conversa com Bial, programa revê crimes de João de Deus

Cena da série 'Em Nome de Deus'
Cena da série 'Em Nome de Deus' - Maurício Fidalgo/Divulgação
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São Paulo

No dia 8 de dezembro de 2018, o talk show Conversa com Bial (Globo) exibiu uma edição que entrou para a história. No cenário habitual, mas sem a presença da banda nem ninguém na plateia, Pedro Bial entrevistou a coreógrafa holandesa Zahira Mous e a americana Amy Biank, que trabalhava como guia para seus conterrâneos em visita a Abadiânia (GO).

A conversa entre eles foi entremeada por depoimentos de mulheres brasileiras que preferiram não se identificar. O assunto era um só: os abusos sexuais cometidos por João Teixeira de Faria, 78, mais conhecido como João de Deus.

Até então, João de Deus era quase uma unanimidade nacional. Políticos, estrelas da TV e milhares de anônimos acudiam à Casa de Dom Ignácio de Loyola, a instituição que ele mantinha em Abadiânia, em busca de cura para males físicos e espirituais.

O suposto médium também já estava se tornando uma celebridade internacional. Foi entrevistado por Oprah Winfrey, viajava com frequência ao exterior para palestras e aparições públicas e havia até mesmo aberto um “centro de cura” em Sedona, no estado americano do Arizona.

Aquele episódio do Conversa com Bial detonou o império de João de Deus. Dezenas, depois centenas de outras mulheres vieram a público com novas denúncias. Alguns casos remontavam a mais de quatro décadas. A polícia entrou em cena e o médium foi preso, investigado, julgado e condenado a 40 anos de reclusão. Hoje, um ano e meio depois, João de Deus está em prisão domiciliar, por causa da pandemia do novo coronavírus.

Nesse meio tempo, a equipe do Conversa com Bial se aprofundou ainda mais na história do autoproclamado vidente. Havia muitas perguntas não respondidas: como que João de Deus conseguiu permanecer impune por tanto tempo? Outras mulheres já o haviam denunciado antes –por que só agora essas acusações começaram a ser levadas a sério?

O resultado é a minissérie documental “Em Nome de Deus”, em seis episódios, conduzida pelo próprio Pedro Bial e roteirizada pelos jornalistas Camila Appel (que também é colaboradora da Folha, onde assina o blog Morte Sem Tabu) e Ricardo Calil. Este também assina a direção, junto com Giancarlo Bellotti e Mônica Almeida.

Tive acesso a três episódios de “Em Nome de Deus” –o primeiro, o quarto e o quinto– e ainda estou sob o impacto da história de terror que é contada ali. Por várias razões, a trajetória de João de Deus só poderia ter se dado no Brasil. Diversos traços do nosso caráter nacional se combinaram numa tempestade perfeita, produzindo uma autêntica “Brazilian Horror Story”

“Há algo de muito errado no nosso contrato social”, disse Bial durante uma entrevista coletiva por videoconferência. “Os brasileiros estão sempre em busca de um herói, um salvador da pátria. Uma herança cultural do sebastianismo português. Também ainda temos resquícios do coronelismo, que vem do século 19. João de Deus andava armado. Agora ele está em prisão domiciliar, e suas vítimas estão alarmadas”.

É difícil explicar o medo que João de Deus incutia nessas mulheres. Algumas temiam até mesmo represálias espirituais. Acreditavam, por exemplo, que se denunciassem os estupros a que eram submetidas, seus parentes adoeceriam.

Tampouco podemos esquecer que vigora no Brasil um sistema de descrédito às vítimas de violência sexual. Algumas delas já haviam acusado João de Deus no passado, mas ele sempre foi inocentado. É sintomático que a primeira mulher que concordou em vir a público e se identificar fosse uma estrangeira, a holandesa Zahira Mous (e mesmo ela relutou muito).

“Em Nome de Deus” traz muitas revelações chocantes, mesmo para quem o caso não era novidade. Entre os muitos depoimentos inéditos está o de Dalva, filha de João de Deus, a quem ele abusava desde que ela tinha 10 anos de idade. Ainda mais escabroso é o caso de Maria, a quem João teria tentado matar com pedras e tiros depois de tê-la violentado, quando ela ainda era virgem.

Produzida com rigor jornalístico e delicadeza no trato com as vítimas, “Em Nome de Deus” não fica nada a dever às séries documentais sobre crimes verdadeiros, um gênero que se tornou extremamente popular com o advento do streaming. Ao contrário: enquanto muitas desses programas espicham demais o assunto e se tornam repetitivos, os três episódios que eu vi de “Em Nome de Deus” são ágeis, sem “barriga” nem enrolação.

A sensação que fica é a de que João de Deus é só mais um vulto do lado mais sombrio do Brasil. Um lado violento, machista, racista, homofóbico e atrasado. Que sempre esteve aí, é claro, como pano de fundo do nosso dia a dia. Mas que, de uns tempos para cá, passou para o primeiro plano e agora parece nos sufocar.

A Globo exibe o primeiro episódio de “Em Nome de Deus” nesta terça (23), às 23h15. Na quarta (24), os seis episódios da minissérie estarão disponíveis na plataforma Globoplay. A partir deste mesmo dia, o Canal Brasil passa a exibir um episódio por dia, sempre às 20h50, até segunda (29).

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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