Quem critica fantasia de índio não entende o que é o Carnaval
Fantasia serve para fazer crítica política ou revelar desejos íntimos, não para apoiar a opressão
Por que ninguém se fantasia de escravo no Carnaval? Porque as fantasias cumprem basicamente duas funções, que costumam ser excludentes entre si. Uma dessas funções é social. É fazer uma crítica bem-humorada aos poderosos de plantão, ou aos problemas que afligem a sociedade. É se fantasiar de água contaminada ou de fila do INSS. Ninguém usa uma máscara de Lula ou de Bolsonaro para homenagear esses políticos: usa para tirar sarro deles. Para tirá-los do altar e colocá-los no meio do bloco, de latinha na mão e dedinho para cima.
A outra função é psicológica. Muitas vezes, os foliões se transformam naquilo que gostariam de ser, nem que seja por apenas algumas horas. Mulheres se vestem de melindrosas ou de coelhinhas da Playboy –personagens que representam o lado divertido do sexo, longe da repressão e da autocontenção da vida real. Homens se vestem... de mulher. Jogam para longe a obrigação de serem durões e agressivos, e extravasam seu lado mais delicado.
Todas essas fantasias vêm sendo patrulhadas. Uma mulher com roupas sensuais estaria desrespeitando a vida dura das profissionais do sexo. Um homem vestido de mulher estaria ridicularizando a condição feminina na sociedade patriarcal, uma situação de inferioridade da qual ele escapa no resto do ano.
Nenhuma fantasia gera mais "cancelamentos" do que as de índio. Esse tipo de reclamação, surgido nos Estados Unidos, chegou ao Brasil com força já faz alguns anos. Sair de cocar e tanga é achincalhar o sofrimento dos povos nativos, dizimados pelos colonizadores e, atualmente, vilipendiados pelo governo Bolsonaro. É apropriação cultural em estado puro.
A coisa chegou a um ponto em que Alessandra Negrini, que desfilou de índia neste domingo (16), no bloco paulistano Acadêmicos do Baixo Augusta, precisou se cercar de Sonia Guajajara e outras lideranças indígenas, para comprovar que estava “autorizada” a usar a fantasia.
A atriz teve que deixar claro que sua indumentária era um protesto político. Mesmo assim, foi atacada nas redes sociais. Imagine, então, se fosse uma foliã anônima? Acontece que a fantasia de índio é, antes de tudo, prática. Não requer muita produção, é adequada ao calor de fevereiro e dá liberdade de movimentos.
Liberdade também é a palavra-chave para entendermos por que esta fantasia é tão popular. No inconsciente coletivo, o índio vive em harmonia com a natureza. É uma vida livre de tensões, sem agrotóxicos nem boletos a pagar. Claro que nada disso corresponde à realidade dessas etnias, mas a ilusão persiste.
Por isso, quando alguém sai de índio no Carnaval, está, na realidade, tentando se livrar das amarras sociais do Ocidente. Está tentando ser mais “selvagem”, mais “primitivo”, sempre no bom sentido das palavras. Em nenhum momento está defendendo a opressão ou a conversão dos indígenas, como fazem certos antropólogos de direita.
É por isso, também, que ninguém se fantasia de escravo. Afinal, quem quer ser escravo? Quem consegue fazer graça com a escravidão? Tal fantasia não cumpriria nenhuma das duas funções, a social e a psicológica, e só serviria para desanimar os foliões.
O Carnaval nasceu como uma festa antirreligiosa: o dia anterior ao começo da Quaresma (que, para os católicos, é cheia de restrições), em que os prazeres da carne seriam permitidos. Este dia virou quatro e hoje já é quase um mês nas grandes cidades brasileiras.
Patrulhar as fantasias é minar o Carnaval. É desconhecer o espírito da festa e se render a um moralismo de poltrona, que não resolve nenhum problema concreto e ainda irrita os patrulhados, pavimentando a estrada que leva ao populismo de direita.
Deixem os fantasiados de índio pular em paz.
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