Afinal, o Salgueiro fez mesmo 'blackface' em seu desfile?
Escola apresentou enredo "Senhoras do Ventre do Mundo" no segundo dia de desfiles
Tenho a sensação de que este Carnaval foi um ponto de virada na cultura brasileira. As sombras que nos acompanham há alguns anos devolveram o lugar à irreverência e à crítica social, temperadas com uma boa dose de alegria.
De norte a sul do país, blocos e outras manifestações de rua confirmaram o vigor quem vêm adquirindo há mais de uma década. A política se fez presente nas marchinhas, nas fantasias e até nas tatuagens contra o assédio sexual. Por outro lado (e ainda bem), poucos deram ouvidos à bobajada de se proibir fantasias de índio ou de homem-vestido-de-mulher.
No Rio de Janeiro, as escolas de samba do Grupo Especial talvez tenham feito seu melhor desfile de todos os tempos. Todas as 13 agremiações resplandeceram na Sapucaí, e tragédias como as do ano passado, em que houve atropelamentos e até mortes em plena avenida, não aconteceram.
Com pouco dinheiro público e sem o patrocínio de grandes marcas, as escolas se livraram dos enredos cabotinos, como as glórias da estatal petroleira da Venezuela ou a pujança do shampoo (sem falar na louvação à ditadura da Guiné Equatorial, que envergonhou a Beija-Flor em 2015).
Neste ano, a Beija-Flor recuperou a verve dos tempos do carnavalesco Joãosinho Trinta e fez um desfile memorável, ressaltando as mazelas da corrupção brasileira (mas, convenientemente, esquecendo que seu patrono, Aniz "Anísio" Abraão David, está condenado a 48 anos de prisão).
A Paraíso de Tuiuti gerou a imagem que vai ficar deste Carnaval, a fantasia do presidente-vampiro que fechou sua apresentação. E a Mangueira enxovalhou o prefeito carioca Marcelo Crivella (PRB-RJ) pelo corte de verbas públicas às escolas de samba, ao mesmo tempo em que mostrava que não depende delas para brilhar.
Mas o desfile mais controverso de todos foi o do Salgueiro, que deslumbrou crítica e público com o enredo "Senhoras do Ventre do Mundo", uma exaltação às mulheres africanas.
O carnavalesco Alex de Souza pintou de preto todos os integrantes da bateria da escola, fossem brancos ou negros. Também montou uma comissão de frente formada majoritariamente por homens, todos também pintados de preto, para representar as mulheres míticas que deram origem à humanidade.
Os integrantes deste abre-alas remetiam a esculturas e pinturas de divindades africanas, e o efeito plástico foi belíssimo. Mas a ala esquerda da internet se ouriçou: o Salgueiro teria cometido o pecado mortal do "blackface".
Mas será que teria mesmo? "Blackface" é o termo de origem americana que designa a extinta prática teatral de atores brancos se pintarem de preto para interpretar personagens negros, geralmente em tom de paródia e com conotações racistas bem explícitas.
A prática nunca foi comum no Brasil, mas o termo foi adotado pela militância mais radical como uma desgraça a ser evitada em qualquer contexto. Até o cantor Michel Teló, que ingenuamente pintou metade do rosto de preto para manifestar-se contra o racismo em seu perfil no Instagram, foi alvo de críticas pela suposta insensibilidade.
No caso do Salgueiro, deveria ser óbvio que o contexto não tem nada a ver com o" blackface" tradicional. Foi uma escolha estética de Alex de Souza e sua equipe: usaram bailarinos profissionais, de porte atlético, para um representação teatral que não tinha nada de realista.
Mas boa parte dos internautas não entende que teatro não é "de verdade", e se sentiu ultrajada por não ver mulheres negras interpretando mulheres negras.
Por outro lado, é incrível que o carnavalesco não tenha percebido que, mesmo com as melhores intenções, suas escolhas seriam mal-interpretadas nesses tempos que correm. O Salgueiro não ganha nada com essa polêmica.
De qualquer forma, todo debate é saudável, e esse carnaval provocou muitos deles. Até os seios perfeitamente ótimos de Bruna Marquezine viraram motivo de treta nas redes sociais.
Carnaval é para isto, galera. Para pular, se divertir, beijar na boca e colocar o dedo nas feridas, que temos muitas. E o carnaval de 2018 conseguiu tudo isto, mostrando que o Brasil não só ainda está vivo como firme e sacudido.
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