Tony Goes

Os anúncios 'racistas' e a sensibilidade exagerada da internet

Marina Ruy Barbosa
A Campanha da Personal com a atriz Marina Ruy Barbosa levou a hashtag #Blackisbeautiful - Divulgação


  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Duas campanhas publicitárias foram acusadas de racismo neste mês de outubro. Um comercial britânico para uma loção da marca Dove causou comoção mundial, e foi logo tirado do ar. No Brasil, o lançamento do papel higiênico Personal Vip Black precisou se livrar da chamada "Black is Beautiful" depois de uma avalanche de protestos.

O primeiro caso é um exemplo do poder das "fake news". O filme original mostrava uma moça que se transformava em outra cada vez que tirava a camiseta. O conceito que se pretendia transmitir era que a tal da loção faz a consumidora se sentir plenamente renovada.

O anunciante ainda quis parecer inclusivo, e colocou mulheres de etnias diferentes no comercial. Para quê, não é mesmo? Um engraçadinho retirou quatro frames do filme - justamente aqueles em que a moça negra se transforma em branca - e os diagramou como um anúncio de revista. Fora do contexto original, as imagens realmente passavam uma mensagem racista. A internet explodiu em chamas, e a campanha foi cancelada.

O caso do papel higiênico é mais suscetível a diferentes interpretações. O problema ali foi o slogan adotado: "Black is Beautiful" (preto é bonito), criado pelo movimento negro dos Estados Unidos na década de 1960 como parte de uma campanha para valorizar os traços naturais dos afrodescendentes.

Acontece que, desde então, a expressão "black is beautiful" foi incorporada ao vocabulário popular, e muita gente não lembra ou nem sabe de sua conotação política original.

Alguns reclamaram de agência e anunciante estarem banalizando a luta dos negros por direitos iguais. Só que, no caso de "black is beautiful", esta banalização já aconteceu. A frase já foi utilizada por dezenas de anúncios para produtos na cor preta ao longo dos últimos 50 anos.

Inclusive, isto é o que mais me incomoda na propaganda do papel Personal Vip Black: black is beautiful é a primeira ideia que vem à cabeça de um publicitário quando um produto preto que se pretende sofisticado lhe cai nas mãos. Parece que alguém teve preguiça de pensar em algo menos batido.

O fato da expressão ser empregada para anunciar papel higiênico piorou a situação. Houve até quem dissesse que a eliminação do slogan não resolvia nada: o simples fato de um papel higiênico ser preto já denotaria racismo.

Aí há um evidente exagero. Em muitos países do mundo, é possível comprar papel higiênico de todas as cores - inclusive preto. O produto também é visto como um item a mais para a decoração dos banheiros. Mas no Brasil ele costuma ser branco, ou em tons claros de amarelo e rosa.

Manifestações contra campanhas como a de Dove ou a de Personal têm motivações justas. Mas, como costuma acontecer nesses casos, os internautas preferiram enxergar a árvore sem reparar na floresta. Detalhes foram tirados de contexto, provocando reações desproporcionais e injustas.

A primeira lição que fica é para a publicidade. Não basta mais a ideia ser boa: agências e anunciantes agora têm que tomar cuidados extras, pois as sensibilidades andam aguçadas e literalmente qualquer coisa pode ser mal interpretada. E, ao contrário do que muitos pensam, cliente nenhum se mete em treta de propósito, só para causar reboliço. Os danos à imagem são sempre maiores do que a repercussão gratuita.

Mas a moral da história é mais ampla. Estamos todos nos radicalizando cada vez mais, e soltando vereditos definitivos antes mesmo de julgar. O mundo lá fora é bem mais sutil e complicado do que uma curtida no Facebook.

Com o perdão do trocadilho óbvio - e sem nenhuma intenção racista - a vida real não é em preto-e-branco.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

Final do conteúdo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Ver todos os comentários Comentar esta reportagem

Últimas Notícias