Depois que Jô Soares se foi, nunca mais conseguimos ser leves
Série do Globoplay relembra o gênio único do humorista e apresentador, com bons depoimentos das mulheres de sua vida
Que saudades do Jô. Minha mãe costuma dizer que ninguém nessa vida é insubstituível, mas sinto que ele é a exceção que confirma a regra. Nenhum apresentador de talk show que o sucedeu preenche a sua falta. Bial é muito culto, mas não tem o mesmo humor. Porchat e Tatá Werneck têm humor de sobra, mas não têm a cultura que o Jô Soares tinha, capaz de falar de futebol, música, teatro, cinema, história do mundo, tudo e qualquer coisa. Só o Jô era completo.
Com o Jô, a gente ia dormir leve, depois de dar boas risadas. Depois que ele saiu do ar, no final de 2016, enfrentamos pandemia, um presidente que negava a pandemia, polarização política cada vez maior, e o humor parece mais difícil de se fazer, de se encontrar. É triste ver que hoje a Globo não tem um único programa humorístico na grade. Fazer humor com política então, nem pensar.
Se zoar com o Lula, é bolsonarista e reacionário; se zoar com Bolsonaro, é comunista e precisa ir pra Cuba. E no entanto, em seus tempos de "Viva o Gordo" na Globo e "Veja o Gordo" no SBT, Jô fazia (mais do que o Chico Anysio) um humor político. "O humorista é antes de tudo um anarquista", ele diz numa entrevista recuperada pela série "Um Beijo do Gordo", com direção de Renato Terra, que o Globoplay lançou no último domingo.
É uma pena que o streaming lance uma série tão importante em dias de Olimpíadas, quando nossos olhos estão voltados pros Medinas, Rebecas e Willians Limas que estão em Paris lutando por medalhas. Mas não deixe de vê-la assim que puder.
Os episódios 2 e 3 são deliciosos, compilando os melhores momentos do "Jô Soares Onze e Meia" (que estreou em 1988 e durou 12 anos no SBT) e do "Programa do Jô" (mais 16 anos na Globo). Quando se juntava um humorista profissional (o Jô) com um humorista amador (o Zeca Pagodinho, por exemplo) então, a conversa era antológica.
Sim, o Jô recebeu todos os grandes nomes da cultura e da política brasileira em seu sofá. Entrevistou o Luiz Carlos Prestes, o Ayrton Senna, o Oscar Niemeyer, o Tom Jobim, deu bronca no presidente Fernando Collor porque falava olhando para a câmera e não para ele. Mas, como bem lembra a série, a força do Jô também estava em garimpar os melhores anônimos do Brasil e dar a eles seus 15 minutos de fama.
No "Roda Viva", Mauricio Kubrusly lhe faz a pergunta: "Você acha que tem tanta gente interessante assim no Brasil para render 15 entrevistas por semana?". Jô aposta que sim, e tinha razão.
"Um Beijo do Gordo" também relembra que Jô foi possivelmente a maior pedra no sapato da Globo em toda a história da emissora. Há anos ele pedia o seu programa de entrevistas, mas o Boni sempre lhe negou. Quando Silvio Santos lhe fez o convite, ele finalmente tomou coragem para sair da maior emissora do país, e Boni jogou pesado: ameaçou tirar-lhe na Justiça o direito de batizar seu novo programa com a palavra "gordo" e cancelar contratos de publicidade.
Em seu depoimento, o ex-diretor artístico da Globo diz que o pedido de Jô era inviável porque ele queria que seu programa fosse ao ar às 20h30 —uma história difícil de engolir, já que no SBT seu "Onze e Meia" começava, como ele mesmo diz, "todo dia rigorosamente fora do horário". E foi Silvio quem sentenciou que, pra "pegar", o "Jô Onze e Meia" tinha que ser diário, e não semanal, como queria o humorista.
Pois é: eu nem comecei a falar do Jô humorista, fartamente lembrado no primeiro episódio com Capitão Gay, Reizinho, Vovó Naná, Ciça, Zé da Galera, Bô Francineide e outras centenas de personagens que alegravam o público sempre às segundas-feiras. Com arrogância, Jô diz numa entrevista que a TV usava só 10% do seu potencial como ator e comediante.
Herdeiros das chanchadas e do teatro de revista, seus programas usavam e abusavam de mulheres bonitas de maiô, na maioria das vezes usadas apenas como adereços para enfeitar a cena. Esse machismo onipresente da época faria seu programa hoje ser cancelado. Mas tenho certeza que o Jô saberia se reinventar.
Uma das raras mulheres a furar a bolha machista e ganhar um personagem fixo foi Claudia Raia, descoberta por Jô quando fazia no teatro o musical "A Chorus Line". O namoro dos dois durou três anos, e ela não cansa de dizer em entrevistas que ele foi "um dos grandes amores" da sua vida. A atriz ainda revela a insegurança e o machismo dele aos quase 50 anos quando, ao terminar a relação, diz que preferia terminar do que vê-la se apaixonar por alguém mais jovem, ou vê-la subir demais na carreira.
Adriane Galisteu relembra o privilégio de ser vizinha de prédio do humorista, aparecendo no meio da madrugada para chorar na casa dele depois de uma briga com o namorado ou para comer sem culpa um sanduíche de Suflair derretido.
Uma boa ideia da série é reconstruir o cenário do "Programa do Jô" e receber nele alguns humoristas da nova geração, como Porchat, Tatá Werneck e Marcos Veras. Porchat, que apareceu pela primeira vez ainda estudante no programa, conta em detalhes como a relação com Jô foi tensa por anos, até que um artigo escrito em homenagem ao mestre amoleceu seu coração.
Outro mérito de "Um Beijo do Gordo" é trazer o maior depoimento até hoje de Flávia Soares, a Flavinha, casada com Jô por 15 anos. Flávia agradece a Cláudia Raia por ter ajudado a vencer uma certa gordofobia que a fazia relutar em ter um relacionamento com Jô. É ela também quem nos ajuda a entender como foram os seis anos do artista entre a aposentadoria da Globo e sua morte. Flávia também revela sem problemas que sua nova mulher, a cantora Zélia Duncan, tinha muitos ciúmes de Jô, até que se aproximaram e se tornaram melhores amigos. É de Zélia um dos melhores depoimentos da série.
E já que nunca pedi nada ao meu colega colunista Renato Terra, fica aqui meu pedido por outras duas séries que o Brasil anda se devendo: uma do Chico Anysio e outra dos Trapalhões. Eles merecem, e nós também.
Um Beijo do Gordo
Série em quatro episódios, já disponível no Globoplay
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