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Zapping - Cristina Padiglione

Netflix mostra Racionais como nunca antes se viu na TV

Com depoimentos e imagens inéditas, documentário oferece identificação a uns e conhecimento útil a outros

Mano Brown e Ice Blue em cena do filme 'Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo'
Mano Brown e Ice Blue em cena do filme 'Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo' - Divulgação
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São Paulo

Boa parte dos astros da música que ganhou o respeito de multidões neste país já se rendeu a jabaculês de rádio e TV, uma espécie de pedágio pago por gravadoras --e muitas vezes pelos próprios artistas-- para que suas músicas tocassem nas emissoras. Antes do advento do Youtube e do Spotify, então, isso era quase uma obrigação para sobreviver de música.

Na contramão desse modelo, os Racionais MCs ganharam os ouvidos da massa sem jamais pagar um centavo à indústria do audiovisual. Fizeram exatamente o contrário: fugiram de holofotes de TV e desautorizaram, em diversas ocasiões, o uso de suas músicas pelo chamado mainstream, embora tenham passado boa parte de sua trajetória invisíveis a essa mesma indústria.

Pela primeira vez diante das câmeras o quarteto liderado por Mano Brown, com Ice Blue, Edy Rock e KL Jay, revisita a sua trajetória por meio de longo relato de seus protagonistas, com imagens inéditas do acervo do grupo desde que tudo começou.

Há depoimentos de terceiros, mas a diretora Juliana Vicente foi muito seletiva na escuta de alguns poucos (e relevantes) personagens capazes de contar a história desses caras da periferia do Capão Redondo e da Vila Mazzei, bairros paulistanos do extremo da zona sul e da zona norte, respectivamente.

"Racionais: Das Ruas de São Paulo pro Mundo" chega nesta quarta-feira, 16, ao catálogo da Netflix
e é uma produção que interessará, evidentemente, aos fãs do grupo e àqueles que tiveram suas vidas transformadas pelas letras de suas músicas. Mas também será útil a quem nunca foi capaz de compreender por que a vivência da periferia e da segregação racial tem urgência em ganhar voz nesse Brasil em que o andar de cima sempre fingiu ser cordial com o de baixo, por mera conveniência.

ONDE TODAS AS LUZES SE ACENDEM

Os artistas lembram como se encontraram, ali pelo centro de São Paulo, na altura do Largo São Bento, onde algumas iniciativas traziam o movimento hip hop à tona nos anos 1980. Brown conta como era a sensação de chegar "onde todas as luzes acendiam". "A gente ia duro mesmo, passava fome no ônibus e se alimentava de luz". "Ir para o centro era como ir pra Nova York", relata.

Quando começou a tomar ciência sobre o movimento negro e lhe disseram que era preciso buscar a transformação social de sua gente, Brown não tinha noção inicial de como ser útil naquele contexto: "Eu não tinha nem chuveiro quente, como é que eu ia defender o povo?", questiona.

"Eu morei numa zona de guerra", lembra Ice Blue. "Eu morava na área mais perigosa da Zona Sul. No final da rua era mata, assim. Todo dia tinha um corpo lá. Só que a gente tinha um campo lá. O relacionamento com cadáver começou a ser natural. Você via um cara enforcado, outro baleado na esquina, ficava dois, três, quatro dia", completa.

O público já começava a prestar atenção neles quando, uma vez, voltando para casa, os músicos apanharam de policiais por não pagarem a passagem do ônibus. "Foi uma época horrível", falam.

RACISMO SILENCIOSO

O filme não é meramente uma cinebiografia. Alcança status de tratado social se o espectador branco (como esta colunista) puder entender, por meio de algumas frases, uma síntese do estrago que a falsa cordialidade entre casa grande e senzala trouxe à luta dos negros no Brasil contra a segregação.

"O racismo que existe no Brasil é um racismo que esvaziou o ódio, nem o ódio ele deixou", diz Brown.

Jorge Ben Jor, quando ainda era só Ben, foi espelho útil aos rapazes que viam nele a chance de serem ouvidos e vistos com os versos que faziam.

Involuntariamente engraçado, Brown arrancou risos em algumas sequências de uma grande plateia presente à Cinemateca Brasileira durante uma exibição a céu aberto do filme, no mês passado, dentro da programação da Mostra de Cinema Internacional de São Paulo.

Um executivo de gravadora conta no doc que quando os Racionais começaram a tocar em rádios do país inteiro, até em estações religiosas, Brown se aborreceu. Disse que não queria a música deles tocando em todos os lugares, muito menos em "rádio de padre". "Se eu não tenho poder para pedir que uma música toque, como é que eu vou mandar parar de tocar a música?", respondeu-lhe o produtor musical.

DÁ O SEU JEITO

Quando achou que o grupo vinha despertando na plateia uma violência que passava longe do propósito de conscientização que pretendiam provocar, Brown sugeriu a todos que fizessem uma pausa para repensar o destino da banda. Houve quem questionasse então como pagariam as contas sem fazer shows. "Ué, se vira. Você não era ladrão?", rebateu Brown.

Houve até vez em que um tiroteio jogou um cadáver aos seus pés e as pessoas passavam por cima do corpo para lhe pedir autógrafos.

Ao falar de "Sobrevivendo no Inferno", disco que levou o grupo a concorrer a prêmios internacionais e que virou livro, Brown comenta que esse álbum tirou o Racionais da periferia, mas não alcançou a favela: "O povo da faculdade é que gostou".

Há também no filme um olhar generoso para quem só vê esses sujeitos como figuras capazes de fazer tremer policiais ofendidos com versos como "Não confio na polícia, raça do caralho", da música "Homem na Estrada". Afinal, para conhecer Racionais para além das letras de canções revolucionárias, temos antes de conhecer as mães dos meninos que um dia eles foram.

A mãe de Brown acompanhava o filho fielmente em apresentações. Já a mãe de Ice Blue conta que quando alguém lhe telefonou avisando que seu filho ia morrer, ela não se acanhou nem se intimidou, e avisou que primeiro teriam de matá-la.

Os homens que me perdoem, mas há olhares que só uma mulher poderia dar a determinadas biografias, e Juliana Vicente, aqui, faz toda a diferença.

Uma das raras pessoas ouvidas além do quarteto de artistas é Eliane Dias, empresária do grupo e casada com Brown há 34 anos. É ela quem explica o ruído que resultou em confusão na Virada Cultural de 2007, quando os Racionais foram proibidos de se apresentarem em locais abertos em São Paulo.

Há motivos de sobra para ver e rever "Racionais: das Ruas de São Paulo pro Mundo", e se permitir ser tocado pelo filme, seja porque você se identifica com a história do grupo, seja porque você pode se surpreender ao notar como esse universo sempre esteve tão próximo de você, sem que nunca tenha sido notado.

Confira o trailer, abaixo.

Zapping - Cristina Padiglione

Cristina Padiglione é jornalista e escreve sobre televisão. Cobre a área desde 1991, quando a TV paga ainda engatinhava. Passou pelas Redações dos jornais Folha da Tarde (1992-1995), Jornal da Tarde (1995-1997), Folha (1997-1999) e O Estado de S. Paulo (2000-2016). Também assina o blog Telepadi (telepadi.folha.com.br).

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