Aviso
Este conteúdo é para maiores de 18 anos. Se tem menos de 18 anos, é inapropriado para você. Clique aqui para continuar.

Zapping - Cristina Padiglione

Fagundes diz que Bolsonaro não tem cultura para se enxergar em D. João 6º

Intérprete do monarca em nova série da TV Cultura, ator diz estar cansado de votar 'contra alguém'

Antônio Fagundes e Ilana Kaplan como D. João 6º e Carlota Joaquina
Antonio Fagundes e Ilana Kaplan são D. João 6º e Carlota Joaquina na minissérie 'Independências', dirigida por Luiz Fernando Carvalho na TV Cultura - Divulgação
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Leitor voraz que é, Antonio Fagundes já tem plena noção de que a Independência do Brasil guarda muitos detalhes pouco difundidos nos livros de história que nos alcançaram na escola. Mas afirma nesta entrevista à coluna que sempre há o que aprender, especialmente diante da proposta de se ver o episódio pela ótica dos escravizados e indígenas, como propõe a minissérie "Independências", seu mais novo trabalho.

"Troco tudo o que eu sei por metade do que eu não sei", fala. Ao descrever D. João 6º, seu personagem na minissérie que estreia nesta quarta, às 22h, vai citando elementos muito semelhantes àqueles presentes no discurso e nos atos do atual mandante do país, Jair Bolsonaro, mas acha improvável que o presidente veja a produção e se enxergue no pai de D. Pedro. "Ele não tem cultura para isso".

De todo modo, torce para que o público identifique no personagem a origem de muitas de nossas questões.

Dirigida por Luiz Fernando Carvalho, com quem já esteve em "Renascer", "O Rei do Gado", "Dois Irmãos" e "Velho Chico", Fagundes se faz acompanhar em cena por Ilana Kaplan, a Carlota Joaquina, além de Daniel Oliveira, que vive D. Pedro, e Gabriel Leone, intérprete de D. Miguel, e Walderez de Barros, a Maria Louca.

Na nossa conversa, o ator fala ainda de seu rompimento com a Globo, onde diz que só voltará a trabalhar se puder conciliar a agenda de gravações com a do teatro, e evita anunciar em quem votará nas próximas eleições, embora avise: "A gente sabe contra quem somos". Confira o que ele diz:

A série acrescenta informações sobre a Independência do Brasil, mesmo para quem já conhece muito dessa história?
Antonio Fagundes -
A gente tem sempre um ou outro enfoque que deixou de perceber, deixou de ouvir, passou por cima, e a série realmente trouxe alguma coisa nesse sentido. Principalmente o que eu gosto é a visão dos escravizados, que realmente nunca tiveram voz.

Em momento algum você ouviu algum relato, e se houve, não foi registrado devidamente. Eu gosto do título da série por causa disso. 'Independências', no plural, porque independe das visões oficiais, independe das visões majoritárias, independe das visões deturpadas, das visões caricatas.

E traz outras vozes, que sempre vão ensinar a gente. É bom que a gente aprenda que o nosso passado não foi tão glorioso assim e que se a gente entender as mazelas do passado, a gente não vai repetir no futuro."

Então a série dialoga com o Brasil de hoje?
Fagundes
- Principalmente através dessa proposta estética do Luiz Fernando, que te provoca no sentido de uma inteiração. Em momento algum você entra na história no sentido de que você está sempre dialogando com a história através das legendas, através da ausência de cenários, através da luz e principalmente pelo trabalho do ator e da câmera. Então, acho que essa coisa forte, moderna, talvez crie um diálogo bom com a plateia.

Você já tinha pensado em viver D. João 6º?
Fagundes -
Desse jeito não, porque uma das características do texto e da proposta do Luiz Fernando foi limpar o aspecto caricatural do D. João 6º. Tem uma ou outra sequência que ele aparece mais ou menos como a gente imaginou que ele poderia ser, um pouco caricato, mas a ideia foi mostrar esse personagem, que foi um grande estadista, na sua época.

Ele foi o único monarca que iludiu Napoleão e o próprio Napoleão reconheceu isso. Ele conseguiu manter a monarquia em Portugal, enquanto todos os outros monarcas da Europa tinham sido derrotados pelo Napoleão. Então, ele veio para o Brasil com uma mentalidade de estadista, agora, um estadista do seu tempo. Ele era genocida, ele era escravagista, ele fomentou a escravidão no Brasil, que decuplicou com a vinda dele pra cá, e transformou a escravidão num grande negócio pra colônia portuguesa porque o lucro era monstruoso, e ele enriqueceu.

A gente pode enxergar nele um chefe da nação de hoje?
Fagundes - É exatamente nisso que eu acho que a série pode contribuir pra que a gente perceba que o que nós estamos vivendo hoje não apareceu hoje. Nós estamos surpresos de perceber o caráter de algumas pessoas, estamos surpresos de perceber que nós não somos aquele povo cordial, que nós não somos aquele povo pacífico e tem gente aí propagando armas, tem gente aí atirando nos outros, tem gente aí acabando com a cultura e isso não veio de hoje.

Eu acredito que se a gente começar a iluminar com luzes claras o terror que foi o nosso passado, o terror que foi a nossa formação do estado brasileiro, de onde vem essa corrupção, essa cultura política... Alguns governos dizem que os artistas mamam nas tetas do governo. Quem mama na teta do governo é a classe política, que gasta 80% da dotação orçamentária do país pra pagar os seus próprios salários, eles mesmos é que votam.

Então, vem de onde isso? Vem das elites, da nobreza, vem do fato de D. João 6º, nos pouco mais de dez anos em que esteve aqui, ele deu mais títulos de nobreza do que em 200 anos a monarquia portuguesa deu em Portugal. Isso criou uma classe de pessoas que viviam nas tetas do governo, viviam do erário público, viviam sem trabalhar, viviam roubando, viviam fazendo falcatruas. Nós estamos falando de que século?

Você acha que Jair Bolsonaro poderá assistir e se identificar com D. João?
Fagundes -
Eu acho que ele não tem cultura pra isso. Ele não consegue articular direito as coisas, né?Mas se ele não se identificar, gostaria que algumas pessoas parassem pra pensar que se não estão se identificando é porque nunca souberam muito bem de onde vieram. Mas se um grande número de pessoas souber de onde nós viemos, e não foi desse passado idealizado que a gente montou pra nós, então talvez a gente não repita isso no futuro.

A gente vem repetindo isso de 1500 pra cá. Um candidato aí até andou citando uma frase que eu adoro do Einstein: diz que se você repete a mesma experiência diversas vezes e ela dá errado, você vai repetir e ela vai continuar dando errado, é uma insanidade repetir a mesma coisa. Nós estamos fazendo isso de 1500 pra cá, repetindo os mesmos erros, mas os mesmos erros pra quem? Não é pro povo, não é pro escravizado, não é pro trabalhador, é a classe politica que está exercendo sempre os mesmos erros. Mas pra eles não são erros.

Faz tempo que você explica que desistiu de declarar publicamente o seu voto porque depois da eleição não tem mais espaço para dizer que discorda do sujeito eleito. Nem neste momento você tornaria o seu voto público?
Fagundes
- A gente está perdendo algumas coisas boas das conquistas que fizemos e uma delas é o voto secreto. O voto secreto não foi criado à toa, foi criado pra acabar com o voto de cabresto e pra acabar exatamente com essas pressões que talvez alguns elementos da sociedade possam fazer sobre o eleitor. E isso faz com que o seu voto não seja tão livre assim quanto você imagina. Eu sou a favor de preservar o voto secreto. No meu caso também.

Mesmo diante da pressão para que as pessoas se posicionem?
Fagundes
- Hoje também. Mas as pessoas, de uma certa forma, sabe contra quem nós somos. Mas eu gostaria também de não ter que votar sempre contra alguém, eu gostaria de votar com a minha consciência, porque determinado político tem um projeto político que eu gostaria de ver, e eu não consigo mais fazer isso, desde 1988, eu tô sempre votando contra alguém, porque o próprio sistema me encaminha pra isso.

Quando eu tenho no 2º turno dois candidatos, tenho que votar num ou noutro, é uma eleição do menos pior, então é sempre assim. Eu sugiro que num segundo turno a gente tenha três candidatos, os três mais votados. Se os três mais votados forem pro 2º turno, o que vai acontecer? Aqueles que tiverem rejeição, entre os dois mais votados, vão votar num terceiro.

A gente está vendo nessa eleição aí muitos candidatos não sendo votados porque a gente não quer deixar um determinado candidato assumir. Tá errado. Porque se todos aqueles que não querem deixar esse candidato assumir votassem no candidato da sua consciência, talvez tivéssemos outro cenário.

O Congresso é outra coisa que a gente nunca prestou atenção, é uma coisa que nós perdemos. Quem é que tá governando o país agora? Inclusive, e principalmente, por esse orçamento secreto. É quem tem o dinheiro, é quem manda em tudo. O ministro da saúde, quando precisar de dinheiro, não vai perguntar pro presidente, vai perguntar pro presidente do Congresso. Outra reforma política que eu faria é: ‘Se você foi eleito senador, você vai até o fim como senador. Se quer ser ministro, não se eleja e fique esperando ser convidado. Porque você vota, na verdade, num cara que você não conhece.

Isso aconteceu comigo. Quando eu fui ver aquele impeachment da Dilma, eu fiquei vendo o dia inteiro as pessoas falando e eu não conhecia ninguém de lá. Nunca tinha ouvido falar daquelas pessoas e eram todos suplentes. Então você está votando em pessoas que você não conhece. Por quê? Porque o sistema permite que você saia pra ser ministro da cultura ou secretário de não sei o quê.

Como está a agenda de trabalho agora?
Fagundes - Voltamos a fazer a peça, 'Baixa Terapia'. E eu estou fazendo o desenvolvimento de uma série, infelizmente não posso falar o que é ainda. Eu vou fazer agora o filme do Cacá Diegues, 'Deus Ainda é Brasileiro'. Eu tenho também alguns projetos de filme pro ano que vem, as coisas estão caminhando.

Nada na Globo mais?
Fagundes -
Eu saí da Gloobo porque eu acho que eles me fizeram uma proposta que eu achava que não era justa depois de 44 anos trabalhando pra eles. A proposta por obra nunca me incomodou. O que me incomodou mais, aliás, a única coisa que me incomodou, e nós não chegamos nem a falar de outras coisas porque eu não deixei a discussão ir adiante, é que eu sempre trabalhei na TV Globo com a condição de que eu gravaria segundas, terças e quartas, que são os dias de folga do teatro.

Nos meus 56 anos de profissão, eu nunca parei de fazer teatro, eu sempre fiz teatro

Mas você sabe que era muito invejado por ter essa prerrogativa na Globo, né?
Fagundes -
Pois é, invejado e tinha alguém torcendo pra que eu quebrasse a perna?

Não, invejado no sentido de que outros atores diziam que também queriam ter agenda especial para fazer teatro.
Fagundes -
E eu dizia pra esses meus colegas: briguem por isso. E se eles [Globo] não quiserem, saiam. E foi o que eu fiz. Eu fiquei enquanto eles honraram o compromisso que tínhamos. Quando eles quiseram não honrar, eu saí. E se eles me chamarem, a primeira cláusula a ser discutida vai ser essa, senão é melhor nem chamar, porque eu não vou parar de fazer teatro.

Você inclusive liderava um grupo de atores na Globo que reivindicava melhores condições de trabalho e remuneração, né? E havia reuniões constantes na casa de alguém.
Fagundes - Tinha, na minha casa. Chamava MOVAR, Movimento dos Artistas. Você não consegue manter um grupo unido se você não tem propósitos iguais... Você vê que o sistema é inteligente, o sistema pensa em tudo. A gente fala ‘parece conspiração’. E é.

Zapping - Cristina Padiglione

Cristina Padiglione é jornalista e escreve sobre televisão. Cobre a área desde 1991, quando a TV paga ainda engatinhava. Passou pelas Redações dos jornais Folha da Tarde (1992-1995), Jornal da Tarde (1995-1997), Folha (1997-1999) e O Estado de S. Paulo (2000-2016). Também assina o blog Telepadi (telepadi.folha.com.br).

Final do conteúdo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Ver todos os comentários Comentar esta reportagem