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Cinema e Séries
Descrição de chapéu The New York Times Filmes

Sotaque de Uma Thurman em 'Vermelho, Branco e Sangue Azul' recebe críticas e abre debate

Até que ponto os atores precisam emular perfeitamente a forma de falar de determinado lugar?

Uma Thurman como a president Ellen Claremont em 'Vermelho, Branco e Sangue Azul'
Uma Thurman como a president Ellen Claremont em 'Vermelho, Branco e Sangue Azul' - Jonathan Prime/Prime Video
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Kyle Buchanan
The New York Times

"Vermelho, Branco e Sangue Azul" demora apenas 7,5 minutos para chegar ao que o filme tem de mais suculento. E não, não estou me referindo ao grande romance do filme, entre um príncipe britânico gostoso e o filho igualmente gostoso da presidente dos Estados Unidos, mas sim ao sotaque gigantesco que domina a história, a cadência sulista melosa adotada por Uma Thurman, que talvez seja o efeito especial mais audacioso desta temporada. Imagine uma mistura entre a voz da personagem de Gina Gershon em "Showgirls" e o jeito de falar do empresário texano Ross Perot e você chegará à metade do caminho —o resto da distância precisa ser percorrido tendo em mãos um "mint julep" em constante e delicioso perigo de ser derramado.

A presidente Uma Thurman (o nome da personagem pouco importa, já que o espectador nunca será capaz de não de pensar em "presidente Uma Thurman" sempre que ela aparecer na tela) surge primeiro por meio do sotaque, de costas para a câmera, porque encontrar aquela voz de frente certamente seria demais para os desprevenidos espectadores do Amazon Prime Video que tropeçarem por acidente no filme depois de longas horas maratonando "Bosch". Ela aparece pela primeira vez dando um sermão em seu filho gostoso sobre o confronto inicial entre ele e o príncipe gostoso. "Querido", diz a presidente Uma Thurman, "você já fez algumas coisas bem estúpidas no passado, mas essa..."

Dizer que fiquei de orelhas em pé seria um eufemismo: a sensação foi como se Arianna Huffington tivesse aparecido diante de mim recitando um monólogo de "True Blood". É um sotaque que ninguém deveria correr o risco de usar se estiver operando máquinas pesadas, mas Thurman o derrama com tamanha intensidade que é preciso admirar a audácia da estrela de cinema. Comecei até a sentir falta dela sempre que "Vermelho, Branco e Sangue Azul" retornava às desventuras românticas dos garotos gostosos: por que estamos perdendo tempo com esses caras entediantes quando o maior suspense do filme é descobrir de que maneira a presidente Uma Thurman pronunciará uma determinada palavra?

Algumas críticas questionaram o desempenho de Thurman, uma reclamação com a qual concordo apenas até certo ponto. Ela foi a escolha errada para o papel? Bem, talvez! Se você está procurando alguém para interpretar uma líder política pé no chão e com raízes na classe trabalhadora, a escolha natural não seria a estrela de "Pulp Fiction - Tempo de Violência", cujo porte é tão aristocrático que no passado ela parecia ser a escolha natural para papéis de mulheres da nobreza e deusas. E, embora o filho gay e atraente da presidente Thurman hesite em se assumir diante ela, o dilema não me prendeu: como temer homofobia da parte de uma mulher que fez uma participação especial de cinco episódios na série "Smash"?

Portanto, sim, admito tudo isso, mas me sinto na obrigação de responder às reclamações das pessoas sobre o sotaque de Thurman. É possível que algo que nos dá tanto prazer seja "ruim"? Thurman acrescenta um toque de entusiasmo a cada uma de suas cenas em "Vermelho, Branco e Sangue Azul", e sua interpretação é muito divertida; embora suas falas talvez contenham um excesso de tempero sulista, nem por isso deixam ser saborosas. Há quem possa criticar, mas tudo o que sei é que fiquei gagá com ela —e não quero dizer "gagá" no sentido de entusiasmado, quero dizer "gagá" no sentido de seja lá o que for que Lady Gaga estivesse fazendo em "Casa Gucci".

Por outro lado, nunca fui muito exigente com relação a sotaques cinematográficos. Há pessoas que querem ficar impressionadas com um filme, mas eu peço apenas para ser entretido. É claro que quando alguém acerta em cheio no sotaque, isso é uma façanha tecnicamente imponente, mas é preciso ser muito xarope para assistir ao filme com uma caneta vermelha na mão para anotar todos os erros de sotaque. Na era dos "blockbusters" grandiosos e com orçamentos de US$ 200 milhões (quase R$ 1 bilhão), um pouco de artifício pode ser bem-vindo e até mesmo comovente: é um lembrete de que todo filme se resume a um grupo de seres humanos que decidiram brincar de faz de conta para divertir o espectador.

Algumas pessoas se queixam de que sotaques exagerados as tiram da realidade do filme, mas em minha opinião, isso conduz ao bolsão de surrealismo que todo filme precisa conter. Por exemplo, não tenho a menor ideia de se o sotaque húngaro de Benny Safdie em "Oppenheimer" é realista e, francamente, pouco me importa. Aquela voz que atrai todas as atenções parece ser a certa para o físico Edward Teller, um personagem arrogante que se recusa a conviver amistosamente com os outros cientistas. Alguns críticos reclamaram dos sotaques italianos em "Casa Gucci", mas não consigo imaginar aquelas 2,5 horas de história sem eles. Se Lady Gaga e Jared Leto não estivessem falando como Wario em "O Feitiço da Lua", toda a diversão teria sido sugada do filme.

O diretor de "Casa Gucci", Ridley Scott, não é purista quando se trata de sotaques. Seu novo filme de guerra, "Napoleão", e o recente drama "O Último Duelo" se passam na França, mas os atores estão basicamente falando... bem, digamos que seja um inglês afetado. Scott disse certa vez que forçar as estrelas de "O Último Duelo" a adotar sotaques franceses teria sido "um desastre", mas quanto a isso, eu discordo. Imagine Ben Affleck terminando as falas cruciais com um pretensioso "a-hon-hon-hon!". Agora que você imaginou, tenho certeza de que gostaria de ver isso no filme.

Muitas vezes, as pessoas que ficam mais irritadas com os sotaques são aquelas que dizem: "Na verdade, sou de lá, e não é assim que as pessoas falam na vida real". Mas cinema não é a vida real e nunca deveria ser. É um espelho mágico feito para nos refletir de maneiras incomuns, um mundo de sonhos que nos pede para acreditar em coisas tão estranhas quanto multiversos, pessoas azuis de três metros de altura ou Mark Wahlberg no papel de um professor de ciências.

Sou natural do sul da Califórnia, e fico absolutamente entusiasmado quando os atores experimentam com as cadências de fala do nosso vale (Emma Watson já foi melhor do que em "The Bling Ring: A Gangue de Hollywood"?), e eu nem sonharia em verificar até que ponto esses sotaques são acurados. Até me divirto com a quantidade de britânicos que falam inglês americano em um tom monótono que lembra Mira Sorvino em "Romy e Michele": Você está fazendo isso para me entreter? Que fofo!

Quando se trata de trabalhar com sotaques, o ator não precisa ser bom, só precisa ser interessante. Admito, porém, que posso estar falando por experiência própria. Certa vez, um professor do ensino médio me desafiou a falar com sotaque britânico na frente da classe e, em pânico, minha mente se agarrou a Katharine Hepburn (notável entre outras coisas por não ser britânica). Na tentativa de imitar sua maneira exótica de falar, aterrissei em algum lugar ao norte da costa do Atlântico e me afoguei.

Mas que bela maneira de morrer. Ainda me lembro dos rostos dos demais alunos: chocados, encantados, horrorizados, compelidos. São todas as coisas que sinto agora quando um ator tenta um sotaque que fica aquém da marca ou a ultrapassa de forma absurda. Há um vídeo de uma produção teatral britânica de "Gata em Teto de Zinco Quente" que costuma circular porque a atriz Sienna Miller recita os diálogos de Tennessee Williams como se fosse Jodie Foster em "Nell". Eu assisto sempre, analisando aqueles poucos segundos como se fossem o filme de Zapruder [sobre o assassinato do presidente John Kennedy em 1963]. Cheguei até mesmo à conclusão de que, se os sulistas não têm esse sotaque, talvez devessem adotá-lo.

No que me diz respeito, Thurman não tem motivos para pedir desculpas. É claro que é difícil acreditar nela como uma personagem que vem de Austin, Texas, mas o lema da cidade é "Keep Austin Weird" [mantenha Austin estranha], e o sotaque de Thurman parece ser uma tentativa de fazê-lo. Para mim, é muito mais constrangedor o fato de que "Vermelho, Branco e Sangue Azul" busque copiar o manual de Ryan Murphy e force Thurman a falar sobre [o remédio de combate ao HIV] Truvada e sexo oral apenas para que o momento se torne sucesso viral no Twitter gay. O sotaque dela já bastaria para isso!

Espero no mínimo que este texto os tenha convencido de que é necessário um pouco mais de latitude quando os espectadores estão determinados a declarar que o sotaque de um filme é "bom" ou "ruim". É espantoso que uma atriz como Meryl Streep consiga fazer um sotaque impecável como se isso fosse simples, mas é igualmente fascinante quando as pessoas o tentam sem sucesso. Nós às vezes somos pomposos demais com relação à arte da atuação, mas há momentos em que seria bom nos lembrarmos de uma verdade muito divertida: atuar, em grande parte, é só falar engraçado.

Tradução de Paulo Migliacci

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