Tony Goes

Por que a TV aberta brasileira entrou em convulsão em 2020?

Pandemia, disputa por verbas e crescimento do streaming explicam demissões e reprises

Renata Aragão, Vera Fischer e José Loreto são alguns dos atores dispensados pela Globo - Globo

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No ano em que comemora seus 70 anos de existência, a televisão brasileira deveria estar em festa. Ao longo dessas sete décadas, ela se consolidou como o meio de comunicação mais capilar e eficiente do país. Apesar da concorrência da internet, as grandes redes abertas ainda abocanham mais da metade de toda a verba publicitária. A TV se imiscuiu de tal forma em nossa vida cotidiana e em nosso DNA cultural que é quase impossível imaginar a vida sem ela.

E, no entanto, o que se vê tanto na tela como nos bastidores é bem outra coisa. Não se passa uma semana sem que uma grande estrela deixe uma emissora –e raramente por vontade própria, como foi com Maisa Silva. Novelas e temporadas de programas de auditório vêm sendo adiados ou simplesmente cancelados, dando lugar a uma enxurrada de reprises. Só o jornalismo anda brilhando como nunca –e, mesmo assim, em apenas alguns canais.

O que explica tamanha convulsão? O fenômeno é complexo e não tem uma explicação única. Mas é possível identificar três grandes causas para o momento difícil por que passa a nossa TV.

A primeira razão é, evidentemente, a pandemia. O coronavírus tirou a economia mundial de seus eixos. Forçados à quarentena e com suas fontes de renda ameaçadas, muitos consumidores reduziram seus gastos a pouco mais do que comida e medicamentos.

Nas grandes capitais brasileiras, há tempos que os intervalos comerciais das emissoras são dominados por meia dúzia de categorias. Não se veem mais anúncios de shampoo, margarina ou achocolatado. Esses produtos corriqueiros cederam espaço para operadoras de telefonia, maquininhas de cartão e um ou outro automóvel.

O confinamento fez o faturamento publicitário das emissoras abertas despencar ainda mais, apesar da audiência ter aumentado. A carestia fez com que até a Globo aceitasse veicular propaganda da Netflix e da Amazon Prime Video, rivais de sua plataforma Globoplay. Sem dinheiro entrando, é impossível manter um programa no ar. O resultado: equipes inteiras demitidas sumariamente.

A segunda razão para a dança das cadeiras é a interferência do governo federal. A Secom de Jair Bolsonaro resolveu parar de anunciar na Globo e redistribuir esse dinheiro entre as emissoras simpáticas ao presidente. Do ponto de vista financeiro, é uma estupidez. Gasta-se mais para se atingir menos espectadores. Mas o objetivo de tal medida não é aumentar a eficácia da publicidade estatal, mas garantir apoio político.

Em contrapartida, os canais beneficiados se esforçam para agradar ao Planalto, descartando jornalistas críticos como Rachel Sheherazade (SBT) ou Boris Casoy (RedeTV!). Na Venezuela, também começou assim.

Ao contrário do que muita gente pensa, o corte dessas verbas pouco afetou a Globo. A emissora jamais foi dependente da propaganda estatal. No entanto, é lá que vêm ocorrendo as demissões de maior repercussão. Vera Fischer, Renato Aragão, Antonio Fagundes, Tarcísio Meira, Glória Menezes e dezenas de outros nomes consagrados não fazem mais parte do elenco fixo da casa.

O que está acontecendo? A queda dos investimentos publicitários, e não só do governo, explica apenas em parte essa onda de cortes. O fato é que, há pelo menos seis anos, a Globo vem tentando racionalizar seu organograma. O projeto “Uma Só Globo” reuniu numa única empresa o canal aberto e as dezenas de canais pagos. Isso levou à eliminação de centenas de funções sobrepostas. O espectador nem ficou sabendo, mas ocorreram –e continuam ocorrendo– “readequações” em todos os departamentos da empresa.

Além do mais, a Globo precisa de fundos para construir seu futuro. Além de ter sido a primeira das redes abertas a investir para valer na TV paga, agora ela também é a única que está levando o streaming a sério. Montar uma plataforma competitiva, como a Globoplay pretende ser, requer aportes milionários em tecnologia e na aquisição de conteúdo. Nessa conjuntura, não dá para pagar R$ 200 mil por mês para um ator famoso ficar em casa.

2020 está sendo um ano trágico para muitas categorias profissionais. No setor de entretenimento, a televisão ainda se sai muito melhor do que os cinemas, os teatros e os restaurantes. Mas não resta dúvida de que ela emergirá da pandemia muito diferente do que entrou. Como todos nós, aliás.