Será que os crimes de Bill Cosby invalidam a sua obra?
Eu era muito jovem e nunca tinha ouvido falar em Iberê Camargo. Só fiquei sabendo de sua existência quando ele estampou as manchetes dos jornais naquele distante ano de 1980: o pintor, que andava armado, se meteu numa discussão no meio da rua e acabou matando um desconhecido com um tiro.
Iberê tinha amigos em altos escalões e passou pouco tempo preso. Logo retomou sua carreira de sucesso. Hoje, passada sua morte, é tido como um dos maiores nomes das artes plásticas brasileiras de todos os tempos.
Mas para mim, não. Simplesmente não consigo apreciar seus quadros, porque lembro logo que a mão que os pintou também foi capaz de matar uma pessoa por motivo fútil.
Será que minha opinião seria outra se eu tivesse conhecido a obra de Iberê Camargo antes desse crime? A resposta é um titubeante... talvez.
É só lembrar de Michael Jackson, de quem sempre fui fã. Eu já tinha vários dos seus discos e tinha ido a um de seus shows quando ele foi acusado de abuso sexual de menores, em 1993.
Sua imagem se quebrou para mim: não o vejo exatamente como um criminoso, mas sim como um sujeito atormentado e extremamente infeliz, cujos demônios interiores acabaram apressando sua morte.
Mas continuo adorando sua música. Pérolas como "Thriller" ou "Wanna Be Startin' Something" são apenas o melhor pop jamais produzido.
Também gosto dos filmes de Roman Polanski, condenado pela Justiça americana por ter feito sexo com uma garota de 14 anos. E amo Woody Allen de paixão, apesar do escândalo promovido por Mia Farrow (que eu acho infundado, aliás ).
Mas então, eu sou incoerente? Tenho dois pesos e duas medidas?
Um debate parecido está acontecendo agora nos Estados Unidos. O comediante Bill Cosby, um dos ícones da cultura de lá, acaba de cair em desgraça. Uma mulher o acusou de estupro e, como é comum nesses casos, logo dezenas de outras tomaram coragem e fizeram acusações parecidas.
As reprises de sua série mais famosa, "The Cosby Show", foram imediatamente canceladas pelos canais pagos, e a produção de uma nova sitcom foi suspensa indefinidamente pela rede NBC. Bill Cosby tornou-se radioativo: ninguém quer se aproximar dele.
Mas isto invalida sua obra? Hmm, talvez. Seu personagem no "The Cosby Show", o dr. Huxtable, era um pai amoroso e engraçado, e o público sempre confundiu criador e criatura. Agora estão percebendo que aquele médico de suéteres coloridos na verdade é um predador sexual.
No fundo, tudo depende da importância do artista e da relação que tínhamos com ele. Um crime grave pode ser relevado por boa parte da crítica especializada, como aconteceu com Iberê Camargo. Ou estragar para sempre uma imagem idealizada, que é o que parece que vai acontecer com Bill Cosby.
Enquanto isto, continuo ouvindo Michael Jackson. Mas com um pouquinho de sentimento de culpa, é verdade.
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