Renato Kramer

O impactante "Beijo no Asfalto"

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Dando início às homenagens ao centenário (agosto de 2012) do nascimento do grande mestre da tragédia urbana, Nelson Rodrigues, "O Beijo no Asfalto"(1960) entrou em cartaz nesta sexta-feira no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, em São Paulo.

Para tal, a Cia. do Teatro Promíscuo, de Renato Borghi e Elcio Nogueira e o Círculo dos Canastrões, coordenado por Marco Antônio Braz juntaram-se para realizar o projeto "Quem ainda tem medo de Nelson Rodrigues?".

Serão montados ainda neste projeto, além de "O Beijo no Asfalto", "Os Sete Gatinhos", "Valsa N.6" - os três sempre de Nelson Rodrigues, "As Noivas de Nelson", com dramaturgia de Marco Antônio Braz e todos com a direção do mesmo. O autor e diretor Nelson Baskerville participará como convidado na dramaturgia e direção do espetáculo "17 X Nelson".

Em "O Beijo no Asfalto", a cenografia de Telumi Hellen causa um certo estranhamento logo de início. O chão todo forrado com uma espécie de papel de embrulho. Aos poucos, alguns atores o rasgam ao circular pelo espaço e, conforme a vida do personagem central vai se desfazendo e sendo estraçalhada pela injúria de uns e ganância de outros - o papel rasgado e estraçalhado no chão vai envolvendo claramente o desmoronar da frágil estrutura que rodeia as suas relações - tanto sociais, quanto profissionais e afetivas. O cenário mostra a que veio.

Arandir (Hudson Senna) assiste a um atropelamento quando está para atravessar uma rua. O homem atropelado cai inerte à sua frente. Ele vai até o corpo, ajoelha-se e o beija na boca. Muitas pessoas que se aglomeravam para ver o ocorrido testemunham o fato. O seu sogro Aprígio (Renato Borghi) também. E, pior, um jornalista mau caráter e oportunista, Amado Ribeiro (Elcio Nogueira), não só vê como fotografa a cena. E aí começa o drama de Arandir.

Versões enganosas do acontecido são veiculadas com o simples intuito de causar estardalhaço e vender jornais. O delegado (Rodrigo Fregnan), comparsa do jornalista ganancioso e sem escrúpulos, só faz meter mais lenha na fogueira. Em casa, Dália (Lívia Ziotti), a irmã da mulher de Arandir, traz a notícia para Selminha (Gabriela Fontana) que, de início, confia plenamente no marido. Seu pai Aprígio também corre para contar-lhe o que viu, mas o envolve um ar de mistério que só será desvendado no final da peça.

A polícia e a imprensa marron começam a forçar a idéia de que os homens não só já se conheciam como seriam amantes. Para acuar Arandir mais veementemente, utilizam-se até da tortura, não só psicológica como física, abusando sexualmente de Selminha. Dália, sua irmã, tenta aproveitar-se da situação para conquistar Arandir, por quem é loucamente apaixonada.

Aprígio, o pai de Selminha, dá a entender o tempo todo que não vai com a cara de Arandir por ciúmes da filha. No final das contas, ele é mesmo apaixonado por Arandir e o mata por ciúmes dele ter beijado outro homem na boca. Arandir, morto a tiros a sua frente, Aprígio ajoelha-se e o beija na boca. Desgraça pouca é bobagem!

A peça tem detalhes que poderiam levar o mais desavisado a considerá-la 'datada'. Mas é um ledo engano. O 'beijo' simbólico de Arandir pode ser o tal 'beijo gay' que não consegue ser realizado nas novelas atuais; a intolerância que se vê nas esquinas da Avenida Paulista nos dias de hoje; todo o sufoco que Arandir enfrenta no trabalho com o escárnio de seus colegas a ponto de ter que se demitir é o que sabemos acontecer nos lugares que freqüentamos, mas que, por via das dúvidas, "varremos para debaixo do tapete", como comenta Marco Antônio Braz.

O diretor afirma que percebe os textos de Nelson Rodrigues como textos essencialmente teatrais. E é essa energia visceral que ele consegue levar para o palco. Numa ou noutra cena, alguns atores escorregam no 'overacting'. È interessante observar o contraste com a leveza e o estranhamento com que Hudson Senna conduz o seu Arandir. E, especialmente, a mescla do teatral-emocional arrebatador com que o mestre Renato Borghi transborda o seu Aprígio.

Teatro de primeira qualidade, "O Beijo no Asfalto", do controverso e genial dramaturgo Nelson Rodrigues, é programa obrigatório para todo o tipo de espectador que sabe ou que quer aprender a saborear um bom espetáculo, que contém: forma, conteúdo e alma. Também uma forte sacudidela no "conhecer-se a si mesmo", através da tragédia alheia. A iluminação é de Roberto Cohen. A sonoplastia, da mestra Tunica Pereira.

O Beijo no Asfalto
Direção: Marco Antônio Braz
Onde: Teatro de Arena (r.Teodoro Baima, 94, Centro, tel. 3256.9463)

Renato Kramer

Natural de Porto Alegre, Renato Kramer formou-se em Estudos Sociais pela PUC/RS. Começou a fazer teatro ainda no sul. Em São Paulo, formou-se como ator na Escola de Arte Dramática (USP). Escreveu, dirigiu e atuou em diversos espetáculos teatrais. Já assinou a coluna "Antena", na "Contigo!", e fez críticas teatrais para o "Jornal da Tarde" e para a rádio Eldorado AM. Na Folha, colaborou com a "Ilustrada" antes de se tornar colunista do site "F5"

Final do conteúdo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Ver todos os comentários Comentar esta reportagem

Últimas Notícias