Guardar 'melhor' esperma e engravidar aos 50: como seria se mulheres tivessem total controle na reprodução
Por milênios, a sociedade trata as mulheres como inferiores aos homens em tudo, da biologia ao intelecto. Os cientistas —historicamente quase sempre homens— também viram o mundo através dessas lentes. Pesquisadores que estudam a reprodução animal, por exemplo, se concentraram quase exclusivamente nos machos.
"Pensava-se que as mulheres eram esse órgão passivo no qual o esperma adentra, e que o óvulo não fazia muita coisa", diz Patrice Rosengrave, pesquisadora da Universidade de Otago, Nova Zelândia. "Tudo estava relacionado aos homens e ao esperma."
Apenas recentemente os cientistas começaram a descobrir a surpreendente variedade de métodos que as fêmeas de muitas espécies usam para ter influência sobre a própria cria.
O fluido ovariano do salmão fêmea, por exemplo, acelera ou desacelera o esperma de certos machos, dando vantagem a determinados parceiros. Depois da inseminação, camundongos e galos-banquiva fêmeas têm mecanismos de contenção do esperma de machos com muita proximidade genética, impedindo a consanguinidade.
Já as drosófilas podem armazenar espermatozoides em órgãos especiais para uso posterior, escolhendo depois o esperma de machos preferidos. E como os patos machos são propensos a estuprar e penetrar as fêmeas com seus pênis longos e em formato de saca-rolha, que giram em sentido anti-horário, as fêmeas desenvolveram canais vaginais que giram no sentido horário, para evitar cópulas forçadas.
Ainda que os humanos, obviamente, não tenham se adaptado à maneira de patos e moscas, muitas mulheres hoje têm mais controle sobre a gravidez por meio de métodos contraceptivos, da pílula do dia seguinte e do aborto.
Mas essas ferramentas não estão universalmente disponíveis, garantidas ou são necessariamente desejadas. Por motivos pessoais, religiosos ou culturais, as mulheres podem não querer usar um desses métodos. E quem quer nem sempre consegue: mulheres em países em desenvolvimento e comunidades com poucos recursos podem não ter acesso a métodos contraceptivos, enquanto outras vivem em locais onde o aborto é ilegal.
Além disso, simplesmente ter acesso a formas de controle de reprodução não garante que todas elas sejam infalíveis. Anticoncepcionais podem não funcionar, profissionais do sexo podem ser pressionadas a não usar proteção e centenas de mulheres são estupradas por dia no mundo.
E se as mulheres de repente herdassem algumas habilidades reprodutivas de outros animais? Mais precisamente, como seria se as mulheres tivessem o poder de controlar, sempre, não apenas quando engravidar e com que idade, mas de quem?
O primeiro e mais óbvio resultado, é claro, seria o fim das gestações não planejadas. Mulheres em quase todas as populações já estão tendo menos bebês por vários motivos. Ainda assim, em 2012, um dos anos mais recentes para os quais há dados disponíveis, 40% das 85 milhões de gestações no mundo foram não intencionais. Em alguns países, como os EUA, o percentual é mais alto — 45% das cerca de 6 milhões de gestações anuais são inesperadas.
Para as mulheres, esse cenário traria a tranquilidade de que "o corpo delas não faria, de repente, essa coisa incrivelmente disruptiva que é engravidar", diz Karen Newman, consultora independente de saúde reprodutiva baseada em Londres, Inglaterra.
Não depender mais de contraceptivos também significaria economizar dinheiro e evitar possíveis efeitos colaterais. Cerca de 500 milhões de mulheres, por exemplo, já usaram a pílula anticoncepcional em algum momento de suas vidas. Algumas têm de lidar com malefícios como depressão, enxaqueca, trombose, entre outros. A esterilização, o método contraceptivo mais popular em todo o mundo, também pode causar graves complicações.
Mas ter controle total poderia levar as mulheres a fazer sexo de forma mais arriscada, levando a um aumento de infecções sexualmente transmissíveis?
"Não vimos isso desde a consolidação da contracepção eficaz", diz Wendy Chavkin, professora emérita de saúde da família, obstetrícia e ginecologia na Universidade Columbia, nos EUA.
Sem gestações indesejadas, seria de se esperar que o número de abortos também diminuísse. De fato, foi o que um estudo americano descobriu: dar acesso à contracepção às mulheres diminuiu significativamente os índices de gravidez não intencional e de aborto entre as adolescentes.
Isso pode ser algo positivo tanto para aqueles contrários quanto os para os que são a favor do aborto.
Seria também mais seguro. A cada ano, 25 milhões de mulheres são submetidas a abortos inseguros, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Esses procedimentos —definidos como aqueles realizados por pessoas não qualificadas, geralmente em condições insalubres— representam até 13% das mortes maternas anuais.
"[Em parte] No Ocidente, essa situação hipotética não faria diferença para a saúde, porque os abortos aqui são extremamente seguros", diz Chavkin, dos EUA. "Mas se sua opção é alguém colocar um objeto perfurante no colo do seu útero, em lugares como a África Subsaariana ou a América Latina, isso de fato faria diferença."
Mas é importante ressaltar que uma situação hipotética em que as mulheres tivessem controle total sobre a gravidez, do começo ao fim, incluiria necessariamente o acesso a abortos seguros.
Isso porque decidir engravidar é apenas uma parte da gravidez planejada. Nos próximos nove meses, as mulheres podem receber um diagnóstico médico ou passar por uma mudança nas circunstâncias que afetam sua decisão: os resultados dos testes podem revelar que o feto não poderia sobreviver fora do útero, ou que a vida da mulher está em risco.
As taxas de natalidade também diminuiriam. Isso não significaria, entretanto, que o crescimento da população —com a previsão de chegar a 10,9 bilhões em 2100– se estabilizaria da noite para o dia. As mulheres ainda podem desejar ter muitos filhos, e as pressões culturais e expectativas para quem sejam mães também podem persistir.
Em conjunto, porém, todas essas coisas —menos gestações indesejadas, menos filhos e abortos perigosos —possivelmente acabariam beneficiando as mulheres e a sociedade em geral.
"Se você eliminasse a única coisa que provavelmente mais do que qualquer outra atualmente impede muitas mulheres [de seguir com sua formação, carreira ou outras atividades] — criar crianças —, o mundo se abriria para elas de forma inédita", diz Susannah Mayhew, professora de políticas de saúde e saúde reprodutiva na Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres.
Mais mulheres seriam capazes de concluir sua educação e ingressar no mercado de trabalho, como indicam amplas evidências mostrando a correlação entre planejamento familiar, menos filhos e educação continuada.
Isso impulsionaria a economia e ajudaria os países em desenvolvimento a crescer a taxas mais sustentáveis, diz Mayhew. De fato, os únicos países do mundo que alcançaram desenvolvimento econômico sem primeiro ou simultaneamente reduzir suas taxas de crescimento populacional são os árabes ricos em petróleo.
O aumento do acesso à esfera pública significaria, provavelmente, que mais mulheres optariam por ocupar cargos públicos.
"Por ter mais mulheres tomando decisões, teríamos uma sociedade mais compassiva, feliz e pacífica, com objetivos que não são puramente ganhar mais e mais dinheiro e manter o máximo de armas nucleares", diz ela, citando estudos que mostram que mulheres têm mais empatia e priorizam mais os valores sociais em cargos de liderança.
Com controle completo sobre a gravidez, também veríamos mais mães mais velhas. Hoje, diversas mulheres já vêm adiando a gravidez —e a certeza de que ela pode ser uma possibilidade mais tarde ajudaria a aliviar a pressão para que tenham filhos no início da vida adulta.
Isso permitiria que as mulheres se concentrassem ainda mais em sua educação ou carreira. Mas, se elas atrasassem a gravidez até os 40 ou 50 anos, veríamos um pequeno aumento no risco de complicações na saúde infantil, como a síndrome de Down, diz Mayhew. Ainda assim, ela ressalta que é muito mais perigoso para uma mulher ter um bebê na adolescência do que fazê-lo na casa dos 40 anos; as famílias com mães mais velhas também desfrutam de vantagens, uma vez que elas são mais propensas a terem melhores condições para criar os filhos.
E se o nosso experimento hipotético sobre o controle pleno da gravidez incluísse também o armazenamento do esperma de um parceiro para uso posterior? Obviamente, independentemente de o doador ficar de fato por perto ou não, isso levantaria questões éticas sobre consentimento — e provavelmente acenderia ainda mais o debate sobre até que ponto os homens devem ter ingerência sobre a gravidez de uma parceira sexual.
Enquanto isso, os espermatozoides de homens considerados melhores pelas mulheres —seja por causa da inteligência, da aparência ou de alguma outra característica desejada— podem se tornar um recurso a ser disputado.
"Talvez houvesse uma inclinação das mulheres a achar que você sempre pode ter um parceiro melhor como pai para o seu filho", diz Renée Firman, bióloga da Universidade da Austrália Ocidental em Perth.
Isso poderia, entretanto, tornar os homens mais cuidadosos do que são atualmente no uso de preservativos. E, sabendo que suas parceiras poderiam armazenar espermatozoides de outros homens, eles podem se tornar paranoicos sobre a paternidade de seus filhos —o que pode tornar mais frequente que recorram a testes para comprová-las.
A longo prazo, os homens também poderiam começar a desenvolver espermatozoides que matam os espermatozoides de machos rivais, ou desenvolver outro mecanismo biológico para aumentar suas chances de paternidade.
Tudo isso, é claro, mudaria a dinâmica dos relacionamentos. E alguns homens não responderiam bem ao poder recém-adquirido pelas mulheres, vendo-o como uma ameaça a seu próprio poder.
Eles podem desenvolver "todo tipo de esforço punitivo para restringir o acesso ao que quer que dê às mulheres controle sobre sua própria fertilidade, corpo e vida", diz Chavkin. "Ou eles podem aumentar os esforços para retratar as mulheres como algozes de fetos."
"Se você seguir a trajetória desse experimento mental e estendê-lo, o que você obtém é The Handmaid's Tale", diz Newman, referindo-se ao romance distópico de Margaret Atwood, adaptado também como uma série televisiva.
Fantasias hipotéticas à parte, uma coisa é clara, diz Mayhew: estamos longe de uma realidade na qual as mulheres controlem totalmente quando e de quem engravidam. Isso porque estamos também distantes de um mundo em que as mulheres, em todo lugar, realmente sejam tratadas como os homens.
"Mesmo nos países ricos, isso implicaria uma mudança radical no status quo. Toda a mentalidade da sociedade precisaria mudar", diz ela. "Eu acho realmente triste e muito revelador que seja tão difícil imaginar um mundo assim.
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