Casais inter-raciais dominam novelas e refletem pressão por mais representatividade na TV
Estudiosos veem oportunidade de discutir inclusão, mas também espaço para mais avanços
"Amor Perfeito", que estreou há menos de um mês na faixa das 18h na Globo, tem em seu núcleo central um casal inter-racial. Os protagonistas são vividos por Camila Queiroz, na pele de Marê, e Diogo Almeida, como o médico Orlando.
Apesar de isso não ser uma novidade absoluta, a frequência com que esse tipo de relação vem sendo abordada sim. Os três horários reservados à dramaturgia inédita na emissora (18h, 19h e 21h) contam com casais nesses moldes: um dos pares é branco e o outro negro.
No começo de "Travessia", Lucy Alves e Chay Suede eram um casal. Depois, a atriz passou a dividir cenas românticas com Rômulo Estrela. Já em "Vai na Fé", a protagonista Sol, vivida por Sheron Menezzes, é disputada pelo galã Lui Lorenzo (José Loreto) e pelo vilão Theo (Emilio Dantas).
Para além do número, reflexo da inclusão crescente de atores pretos e pardos na frente das câmeras na teledramaturgia brasileira, a forma com que esses casais são percebidos pelo público também se modificou. Basta lembrar que, há menos de 40 anos, a atriz Zezé Motta sofreu ataques racistas quando foi o par romântico de Marcos Paulo em "Corpo a Corpo" (1984-1985).
"Fizeram uma pesquisa sobre o que as pessoas achavam desse casal multirracial, e elas falavam coisas que até hoje não acredito. Disseram: ‘Não acredito que o Marcos Paulo esteja precisando tanto de dinheiro para passar por essa humilhação de ter que beijar essa negra horrorosa’", lembrou a atriz, anos depois.
Professora de mídia e comunicação na Universidade do Estado de Nova York, Jasmine Mitchell, que estuda telenovelas brasileiras, diz que cada produção que conta com um ator negro em destaque é uma oportunidade para discutir conceitos como inclusão e justiça social. Isso porque, historicamente, era raro vê-los nessas posições. "Amor por amor, por exemplo, é um privilégio branco", comenta.
A pesquisadora explica que as discussões em torno de casais inter-raciais têm dois pontos importantes aos olhos do espectador —e que se relacionam com a forma como o continente americano foi formado. Ela lembra que a colonização —seja no Brasil ou nos Estados Unidos— afetou a visão que a sociedade tem de raça, gênero, poder e sexualidade.
"Quando o homem é branco e a mulher é negra, o público aceita mais o casal, pois enxerga ali as relações de poder e gênero a que estamos acostumados na sociedade patriarcal em que vivemos", afirma. "A narrativa dominante de homem branco não é só no Brasil. Essa figura dele concentra o poder, como no dia a dia, e vem das raízes narrativas do colonialismo e da mestiçagem brasileira."
"Nas novelas, quando a dinâmica da relação é inversa, com um homem negro e uma mulher branca, não se fala de racismo, é como se fosse uma fantasia em que raça não entra na relação", compara. "Mas isso é uma importante maneira para mostrar a inclusão e levantar discussões. Porque se não vemos na televisão, é como se essas relações não existissem."
Para Maria Cristina Mungioli, especialista em telenovelas brasileiras e professora na Universidade de São Paulo, não basta que a diversidade esteja presente nas novelas apenas de modo protocolar. Os núcleos com atores negros não podem ser encarados apenas como algo a ser riscado da lista. As histórias dos personagens têm que ser coerentes com o resto da trama.
"Os personagens negros também precisam ter arco narrativo, é preciso criar uma história factível e bem desenhada para aquela pessoa. A novela é cotidiano, então você tem que mostrar o caminho do personagem, que ele tem família e profissão, e o percurso dele", explica.
Para ela, também é importante que as novelas tenham sempre em mente se não estão reproduzindo estereótipos relacionados por muito tempo a pessoas negras (colocando-as no papel da empregada doméstica ou do motorista particular, por exemplo). Seja por consciência própria ou por pressão externa, foi-se o tempo em que as produtoras achavam que "fazer a sua parte" era designar apenas papéis secundários para os atores pretos.
"Esse movimento da Globo e de outros meios de comunicação é uma resposta às demandas sociais do nosso tempo", avalia Mungioli. "A falta de representatividade de pessoas negras nas telenovelas é algo histórico. Hoje, essas reivindicações encontram repercussão nas redes sociais e ressoam em políticas internas."
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